Neste domingo da ascensão, a liturgia nos oferece o texto evangélico de Mt 28,16-20, para nossa a reflexão e meditação. É importante destacar, logo no início, que o evangelho segundo Mateus não descreve a ascensão. Aliás, essa vem descrita apenas na obra lucana (cf. Lc 24,50-51; At 1,6-11) e no acréscimo redacional de Marcos (cf. Mc 16,19). Em Mateus, o que é narrada é a manifestação do Ressuscitado, como lemos hoje, com ênfase para a sua presença constante e perene na comunidade.
Podemos dizer que o texto de hoje é uma síntese conclusiva de todo o evangelho segundo Mateus. À medida que escreve suas últimas linhas, o evangelista e sua comunidade fazem questão de resumir a essência de tudo o que já tinha sido apresentado. É isso que percebemos hoje. No entanto, mesmo supondo uma familiaridade com todo o evangelho, a principal chave de interpretação para o evangelho de hoje, está no relato do sepulcro vazio e ressurreição (cf. Mt 28,1-10), com as respectivas manifestações de um anjo do Senhor (v. 2) e do próprio Jesus (v. 9). Tanto o anjo quanto Jesus haviam dado às mulheres a missão de convencerem os discípulos a retornarem à Galiléia para, ali, fazerem eles também a experiência do encontro com o Ressuscitado.
Podemos, pois, compreender porque “Os onze discípulos foram para a Galileia, ao monte que Jesus tinha indicado” (v. 20). A menção aos onze recorda a perda de Judas, o qual já não fazia mais parte do grupo. Mas, tem também um outro significado: o número doze representava um projeto de reconstituição do antigo Israel, alimentando a ideologia nacionalista e triunfalista. Esse projeto faliu, devido a rejeição de Israel, levando Jesus ao escândalo da cruz. À luz da ressurreição, a comunidade mateana, fazendo uma releitura dos últimos acontecimentos, percebe que a missão universal não precisa mais ser configurada segundo as tradições de Israel. Por isso, o número onze não significa incompletude na comunidade, mas é sinal de uma nova perspectiva. Não podemos esquecer que a eleição de Matias para recompor o número doze é um elemento exclusivo da teologia de Lucas (cf. At 1,15-26). Na perspectiva de Mateus, para a comunidade do Ressuscitado sobreviver e crescer, é necessário abandonar os esquemas do judaísmo.
Segundo a recomendação, os discípulos foram para a Galileia, ao monte indicado (v. 20). Em Jerusalém acontecera a grande tragédia para a comunidade dos discípulos. Além de ter sido o cenário da paixão e morte de Jesus, a capital não oferecia nenhuma perspectiva para a comunidade do Ressuscitado lá florescer. Basta recordar o conluio dos poderes religioso, militar e político para desacreditar a ressurreição, com a ideia do roubo do corpo pelos discípulos (cf. 28,11-15). Portanto, o retorno à Galileia era motivo para a sobrevivência da comunidade e, ao mesmo tempo, para o reencontro com as motivações e bases originárias. Além das incompreensões ao longo da caminhada, inclusive disputa por poder (cf. 20,20), os acontecimentos envolvendo a paixão e a morte deixaram a comunidade profundamente abalada. Daí a necessidade de retorno ao ideal primeiro, ou seja, retornar à Galileia para fazer a experiência do monte. Aqui, não se trata de indicações geográficas, mas teológicas.
Ao longo de todo o evangelho, há muitas referências ao monte, desde o monte das bem-aventuranças (cf. 5 – 7) até o monte das oliveiras (cf. 24 – 25). É o lugar de encontro com Deus e com a sua palavra. Foi no monte que Jesus lançou o seu programa de vida, as bem-aventuranças (5,1-12), e esse convite para os discípulos retornarem à Galileia para o monte é exatamente para voltarem à essência do projeto de vida indicado por Jesus. É também um modo de indicar a continuidade entre a mensagem de Jesus de Nazaré e o Ressuscitado. A Galiléia como região desprezada entre os judeus é um alerta aos discípulos quanto aos destinatários primeiros do anúncio: os pobres e marginalizados.
Na sequência, o texto descreve a reação dos discípulos: “Quando viram Jesus, prostraram-se diante dele. Ainda assim, alguns duvidaram” (v. 17). A princípio, parecem duas posturas opostas diante da ressurreição, mas o evangelista as vê como complementares. Prostrar-se é sinal de adoração e de convicção na ressurreição e na divindade de Jesus. Aqui, o evangelista emprega o verbo grego prosku,new – proskinêo, o mesmo usado para indicar a atitude dos magos quando visitaram Jesus recém-nascido em Belém (cf. 2,2). Esse verbo tanto indica adoração quanto sujeição a alguém, como deve ser a postura da comunidade: adorar e sujeitar-se somente ao que foi ensinado por Jesus, assumindo completa autonomia e emancipação em relação aos preceitos da lei. Assim como os magos, os discípulos aceitam os valores do reino como universais e, por isso, lutarão para que cheguem a todos lugares da terra.
A dúvida não faz mal à comunidade, pelo contrário; Nem mesmo Jesus vê problemas no duvidar, tanto que não irá repreender os discípulos por isso. Como o evangelista não diz o motivo da dúvida, nem mostra Jesus repreendendo-os, podemos dizer que ele está apresentando uma característica necessária para a comunidade do Ressuscitado. Para a solidez da fé, a dúvida se faz necessária, pois o seu antídoto não é a certeza, mas o amor. Portanto, quanto mais se dúvida, mais necessidade se tem de amar, e amar sem limites.
Diante da reação dos discípulos, Jesus toma a palavra e profere seu breve discurso de envio (vv. 18-20). É importante perceber que não são palavras de despedida, são de envio e comissionamento. Ao dizer “Toda autoridade me foi dada no céu e sobre a terra” (v. 18), Jesus está decretando a falência dos poderes sediados em Jerusalém (religioso, militar e político), e estabelecendo uma nova ordem. Está também reivindicando para si a identificação com a figura do “Filho do Homem” de Daniel (cf. Dn 7,13-14) e, ao mesmo, tempo corrigindo: ao Filho do Homem de Daniel, foram dados poder e domínio. Jesus trocou o domínio pelo serviço (cf. Mt 20,28), preferindo exercer sua autoridade no amor. A verdadeira autoridade, motivada pelo amor, parte da periferia, enquanto em Jerusalém tem apenas força de morte, uma vez que lá a autoridade é exercida com base na mentira, no medo, no suborno e na violência.
Após uma pequena introdução (v. 18), segue-se o envio universalista e inclusivo: “Ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo” (v. 19). Aqui, Ele está, de fato, fazendo uso da sua autoridade e, mais uma vez, mostrando a diferença da sua para outras formas de exercício de autoridade. Ele não envia seus discípulos para impor nem dominar, mas para fazer novos discípulos, uma vez que no seu reino não há súditos, mas irmãos. Essa é, sem dúvidas, uma das maiores novidades de seu projeto de vida e de sociedade. Não envia os discípulos para doutrinarem ninguém, mas para apresentarem uma proposta de vida. Aqui, registramos a força do verbo empregado pelo evangelista para “fazer discípulos”: no grego, idioma original do evangelho, há o verbo “discipular”, maqhteu,w – matheteúô; com ele, o evangelista consegue distinguir o discipulado de uma simples tarefa, o que não distinguimos com facilidade em nossa língua, com as traduções que temos. O novo e universal discipulado deve nascer do testemunho, ou seja, da maneira de viver dos discípulos, os quais não são operadores de tarefas, mas seguidores de Jesus de Nazaré, o Ressuscitado.
À missão de “discipular” é intrínseca a função de batizar, como sinal de pertença à comunidade dos discípulos. Mateus pensa na sua comunidade, obviamente, marcada pela tensão entre os adeptos e os contrários à prática judaica da circuncisão. Dos novos discípulos, não deve ser exigido nenhum sinal exterior além do batismo. A fórmula trinitária expressa a preocupação do evangelista para que o batismo de ingresso na comunidade cristã não seja confundido com o rito penitencial de João Batista. A expressão “Em nome de/do” indica a força do batismo. Na tradição bíblica, o nome de uma pessoa é a sua própria essência, expressa a totalidade do seu ser. Portanto, ser batizado em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, é ser impregnado da essência de Deus.
Como última recomendação do mandato, Jesus apresenta uma advertência, mais que uma ordem: “ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei!” (v 20a). Tudo o que Ele ordenou ou ensinou não foi muita coisa, não foi uma doutrina, foi apenas um jeito de viver. O pronome indefinido tudo, em grego pa,nta – panta, expressa a totalidade do que Jesus ensinou e a preocupação para que nada seja acrescentado de secundário e que possa, inclusive, desviar a comunidade do que foi ensinado por Ele. E o que, de fato, Ele ensinou, como já afirmamos, foi um jeito de viver, proposto nas bem-aventuranças e em todo o discurso da montanha (Mt 5 – 7). O que os discípulos têm a ensinar, para que todas nações sejam “discipuladas” é a vivência das bem-aventuranças, e isso não é doutrina nem código, é vida concreta, é um jeito de ser.
A última frase de todo o evangelho é, na verdade, a síntese: a certeza da presença de Jesus na comunidade: “Eu estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (v. 20b). Embora a tradução do texto litúrgico apresente o verbo estar (em grego eivmi – eimí) no futuro, o evangelista o emprega no presente. A presença é um tema central no evangelho segundo Mateus: no início, Jesus é apresentado como Emanuel, cujo significado é “Deus está conosco” (1,23); Ele mesmo garantiu estar presente quando a comunidade estivesse reunida em seu nome (18,20), e garante, aqui na conclusão, permanecer para sempre com os discípulos. Por isso, com essa certeza, Mateus não tinha motivos para descrever Jesus subindo para o céu, como fez Lucas. O importante é que a comunidade possa sentir sua presença e que essa a estimule a viver e ensinar somente o que Ele ensinou.
O Ressuscitado está, de fato, presente na comunidade que vive o ideal de vida proposto nas bem-aventuranças. Nessa comunidade todos são discípulos e irmãos. Essa comunidade celebra, acolhe, convence pelo testemunho e coloca-se em saída para, com alegria, compartilhar tudo o que Ele ensinou!
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues