Neste décimo segundo domingo do tempo comum, a liturgia nos propõe Mateus 10,26-33 como texto evangélico. O décimo capítulo do Evangelho segundo Mateus contém o segundo discurso de Jesus, chamado discurso missionário ou apostólico. O Evangelho de hoje, portanto, faz parte desse discurso.
No domingo passado (XI Domingo do Tempo Comum), nós contemplamos o inconformismo de Jesus com a situação do povo: estava violentado e abandonado como ovelhas que não tem pastor (cf. Mt 9,36). Diante daquela situação, Jesus não encontrou outra saída senão convocar os seus discípulos e convertê-los em apóstolos, ou seja, em enviados, para tirar o povo da situação deplorável em se encontrava por causa da violência, corrupção e indiferença dos detentores de poder na época, a religião oficial judaica e o império romano.
O discurso missionário é um conjunto de instruções e recomendações práticas para a missão. Se trata de advertências quanto ao modo de apresentar-se e comportar-se num mundo hostil aos valores do Reino dos céus. O desafio dos discípulos consiste exatamente em anunciar que “o Reino dos céus está próximo” (cf. 10,7) onde predomina o “anti-reino”, ou seja, os projetos de morte e negação da vida, impostos por Roma e pela religião.
No final dos anos 70 do primeiro século, a comunidade de Mateus vivia situações de perigo e perseguição. Sabendo que é exatamente em situações assim que os valores do Reino precisam ser corajosamente anunciados, aquela comunidade resgatou as instruções que Jesus deu aos doze primeiros discípulos, atualizando e colocando por escrito, fazendo delas normas para as comunidades cristãs de todos os tempos e lugares do mundo. Foi nesse contexto que surgiu o Evangelho segundo Mateus.
Das tantas recomendações dadas por Jesus aos discípulos, a comunidade mateana recordou mais aquelas a respeito das perseguições e da necessidade de resistência da comunidade, para que, de fato, o Reino pudesse acontecer e as situações de sofrimento e opressão fossem transformadas em situações de paz, liberdade e vida em abundância.
No trecho escolhido pela liturgia de hoje, predomina exatamente o encorajamento: “Não tenhais medo dos homens, pois não há nada de encoberto que não seja revelado e nada há de escondido que não seja conhecido” (v. 26). A expressão “não tenhais medo” ocorre três vezes no texto de hoje (versículos 26, 28 e 31), o que a constitui numa chave de leitura para todo o trecho: indica que coragem, testemunho e anúncio são inseparáveis. É também uma expressão muito usada em toda a Bíblia, compreendendo os dois testamentos. Está sempre relacionada a contextos de vocação e missão.
O medo é um mal do qual a comunidade cristã deve se libertar. O que havia de encoberto e escondido era o mistério do Reino, aquilo que até então somente os discípulos tinham aprendido com o Mestre, sobretudo o seu jeito de viver. Não se trata de planos secretos, como algumas interpretações propõe. A convivência com Jesus era muito enriquecedora para os discípulos e eles aprendiam muito com isso. Necessitavam, pois, de coragem para anunciar e revelar ao mundo a vivência da Boa Nova do Reino, o amor que emanava de Jesus e que os contagiava. O jeito de Jesus viver precisava ser conhecido por todos, não podia mais ser privilégio de um grupo pequeno ou de uma comunidade exclusiva. No entanto, como a vida de Jesus ia de encontro ao que os sistemas da época propunham, tornava-se arriscado para os discípulos anunciar e, principalmente, viver como Jesus vivia.
Uma comunidade amedrontada tende a fechar-se em si mesma e restringir o anúncio às quatro paredes e a grupos muito reduzidos de pessoas. Por isso, o apelo de Jesus: “o que vos digo na escuridão, dizei-o à luz do dia; o que escutais ao pé do ouvido, proclamai-o sobre os telhados” (v. 27). Jesus, condicionado à existência humana, não podia anunciar o Reino sozinho, por isso, convocou os doze e os enviou (cf. 10,1-8). A expressão “O que disse na escuridão”, portanto, significa aquilo que somente os discípulos viram e ouviram. Chegou o momento de tornarem público, anunciando sem medo e fazendo uso de todos os meios lícitos possíveis.
“Proclamar sobre os telhados” é, de fato, o convite à criatividade e à eficácia: os discípulos não podem abrir mão de nenhum meio que possa fazer o Reino dos céus acontecer. As multidões violentadas e abandonadas (cf. 9,36) não podiam esperar que as condições dos discípulos melhorassem para chegarem até elas. A comunidade cristã deve, mesmo sendo perseguida, fazer de tudo, o possível e o impossível, para o anúncio de libertação e vida plena chegar a todos.
Marginalizada pela sinagoga e por qualquer espaço oficial, a comunidade deve buscar meios alternativos para o anúncio do Reino acontecer, até os telhados, se for necessário. O importante é que a mensagem libertadora não fique restrita a um pequeno grupo, como se tratasse de um conhecimento teórico. O Evangelho é uma proposta de vida que deve ser comunicada a todos e todas sem exceção, independente das circunstâncias. Não há tempo a perder.
Como a maior necessidade da comunidade naquele momento era a coragem, Jesus exorta mais uma vez: “Não tenhais medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma” (v 28a). Pouco tempo antes, Jesus tinha alertado os discípulos de que eles seriam açoitados entregues às sinagogas e tribunais (cf. 10,17), por isso pede para que, mesmo assim, não tenham medo. De fato, quem tem medo da morte não está apto para o seguimento de Jesus. Quem faz experiência de comunhão profunda com Ele, “mesmo que morra, viverá” (cf. Jo 11,25). Os que matam não conhecem a vida em plenitude, pensam que a vida se restringe ao corpo.
A oposição entre alma e corpo aqui é a distinção entre uma vida restrita à dimensão biológica (corpo) e uma vida plena (alma), uma vida com sentido, própria de quem vive os valores do Reino. Essa não ninguém a tira. Nada tem a ver com o dualismo grego corpo-alma. A alma (em grego ψυχη – psykê) para a comunidade de Mateus significa a totalidade do ser humano que encontra sentido para a vida na experiência de amor-comunhão com Jesus.
O único temor que deve haver na comunidade cristã é “daquele que pode destruir a alma e o corpo no inferno” (v. 28b). Essa é uma expressão ambígua. A quem ela se refere? Com certeza não é a Deus! O discípulo só deve ter medo de si mesmo. Deve ter medo de agir covarde e incoerentemente com a Palavra que anuncia. Em outras palavras, o discípulo de Jesus deve ter medo de ter medo. É o medo que destrói a vida. Inferno não significa apenas condenação eterna, mas significa também a inutilidade. A palavra grega que é traduzida por inferno se referia ao lixão de Jerusalém, o qual mantinha um fogo permanente, em decorrência da quantidade de lixo que a cidade produzia. Era para lá que iam as coisas inúteis. Um discípulo medroso é tão inútil a ponto de ser comparado a essa realidade desprezível.
Não é possível superar o medo sem confiança no Pai. Nesse sentido, Jesus usa dois exemplos de coisas aparentemente insignificantes: os pardais e o cabelo (versículos 29 e 30). Os pardais eram os pássaros comestíveis comercializados por menor valor, e o cabelo a unidade do corpo mais insignificante. Se até essas coisas são merecedoras da atenção do Pai, muito mais será a vida do discípulo que levar a sério o seguimento de Jesus e a missão de fazer o Reino dos céus acontecer na terra.
A comunidade que levar a sério a mensagem de Jesus, superando suas dificuldades e medos, anunciando com determinação a chegada do Reino, transformando situações de morte em vida, terá, não como prêmio, mas como consequência, a certeza do testemunho do próprio Jesus diante do Pai (versículos 32 e 33). De fato, receber o testemunho de Jesus diante do Pai é a certeza de que a vida foi levada a sério. Levar a vida a sério e conduzi-la de acordo com o Evangelho é um ato de coragem.
Que o Evangelho seja vivido corajosamente e anunciado com alegria!
Mossoró-RN, 24 de junho de 2017, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues