Neste quinto domingo da quaresma, a liturgia propõe novamente um texto do Quarto Evangelho: João,12,20-33. Se trata de um trecho bastante longo, o que nos impede de comentá-lo versículo por versículo, além de muito rico e complexo, tanto do ponto de vista teológico quanto literário. Procuraremos, em nossa reflexão, colher a mensagem central, destacando alguns versículos específicos, após uma indispensável contextualização.
O nosso texto está inserido em uma posição privilegiada do Quarto Evangelho: entre o final da vida pública de Jesus e o início da narrativa da sua paixão, ou seja, entre o “livro dos sinais” e o “livro da glória” como os estudiosos costumam dividir o Evangelho segundo João. O importante é que se trata de um episódio de transição entre as duas fases da vida de Jesus.
Junto com seus discípulos, Jesus já se encontra em Jerusalém para participar de mais uma “páscoa dos judeus” (cf. 11,55), a última. Como sabemos, com a expressão “páscoa dos judeus” o evangelista denuncia que aquela festa já não pertencia mais a Deus, uma vez que, ao invés de ser celebração de libertação, transformou-se em instrumento de exploração, com o templo sendo transformado em “casa de comércio” (cf. Jo 2,13-22). É importante perceber a relação entre o evangelho de hoje com aquele da denúncia dos vendedores no templo, refletido no terceiro domingo.
Ao denunciar a mercantilização de Deus, Jesus propôs a destruição do templo-edifício de pedras e se auto-apresentou como o novo, verdadeiro e definitivo templo, decretando a completa falência da instituição religiosa judaica. Do primeiro versículo do evangelho de hoje, percebemos o início da realização daquela proposta profética: “Havia alguns gregos entre os que tinham subido a Jerusalém para adorar durante a festa” (v. 20). Com a expressão “alguns gregos” (em grego: {Ellhne,j tinej – Helenés tines) o evangelista se refere aos prosélitos ou simpatizantes do judaísmo, mas de origem não judaica, os estrangeiros; participavam da vida religiosa judaica, observavam a lei e sentiam-se atraídos pelo Deus de Israel, por isso iam a Jerusalém para adorá-lo, mesmo não sendo admitidos oficialmente na religião.
Com o templo transformado em casa de comércio, a adoração a Deus tinha se tornado algo impossível naquela estrutura. Por isso, os gregos“Aproximaram-se de Filipe, que era de Betsaida da Galileia, e disseram: ‘Senhor, gostaríamos de ver Jesus’” (v. 21). O desejo dos gregos de ver Jesus significa que a religião do templo já não favorecia mais o encontro das pessoas com Deus. Ver, aqui, significa conhecer, contemplar, ver em profundidade. Os gregos não queriam conhecer os traços físicos de Jesus, mas fazer uma experiência de vida com ele. Os pagãos são os primeiros a reconhecer Jesus como o templo verdadeiro, antes mesmo da destruição do edifício (cf. Jo 2,19-22); esse é um dado de grande importância. Além da falência da instituição religiosa, o evangelista apresenta, ao mesmo tempo, o alcance universal da mensagem de Jesus: não estando preso a uma estrutura fixa e rígida, ele se torna acessível as pessoas de todos os povos e culturas.
Os gregos que queriam ver Jesus procuraram um discípulo, Filipe, esse por sua vez, procurou outro discípulo: “Filipe combinou com André, e os dois foram falar com Jesus” (v. 22). O evangelista não está “burocratizando” Jesus, mas enfatizando o papel essencial da comunidade cristã de favorecer o encontro com o Senhor. É na comunidade que se conhece e se faz verdadeiramente encontro com Jesus. E quem já o conheceu, obviamente, não mede esforços para que outras pessoas também o conheçam. Na comunidade, todos devem ser acolhidos, independente da origem, das características ou da identidade; a comunidade cristã não pode negar a ninguém o direito de encontrar-se com Jesus.
A princípio, a resposta de Jesus aos discípulos que lhe levaram o pleito dos gregos parece não atender às expectativas: “Jesus respondeu-lhes: ‘Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado” (v. 23). Porém, não só atende, como vai além: a glorificação de Jesus é o alcance universal da sua mensagem, até então muito concentrada e destinada a um pequeno grupo. A “chegada da hora” é um tema central do Evangelho segundo João; tudo o que Jesus vivenciou até então, foi preparação para a sua “hora”: hora de entregar-se definitivamente, mas sobretudo, hora de demonstrar que os sistemas vigentes, político e religioso, não toleram que alguém viva somente para o amor! Foi por causa do seu excesso de amor que lhe levaram para o tribunal e, em seguida, para a cruz. Essa glorificação não significa uma entronização ou coroamento; é a explosão do amor que se torna acessível a todos, sendo capaz de contagiar o mundo inteiro. Esse amor não pode mais ser contido, será revelado plenamente e todos poderão acolhê-lo: gregos e judeus, bons e maus, justos e pecadores.
Como uma declaração solene, e fazendo uso da imagem do grão de trigo, Jesus anuncia sua morte e, ao mesmo tempo, o seu efeito: “Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto” (v. 24). “Em verdade, em verdade” (em grego: avmh.n avmh.n – amém, amém) é uma expressão que sempre introduz um ensinamento solene e irrenunciável; significa a importância do que está sendo proclamado. A entrega, a capacidade de morrer por amor é irrenunciável para a comunidade cristã. Não se trata de uma simples entrega passiva, mas é a coragem de lutar pela vida até as últimas consequências; essa luta não pode ser feita, senão movida pelo amor. Uma morte assim será sempre sinal de vida e de frutos abundantes, à semelhança do grão de trigo enterrado no chão.
Recordando que todo esse discurso faz parte de uma resposta ou apresentação de Jesus aos gregos que queriam vê-lo, podemos perceber a preocupação do evangelista com a sua comunidade e com as comunidades de todos tempos: ver ou conhecer Jesus é envolver-se com o seu projeto de vida. E esse projeto exige renúncias, decisões e tomadas de posição. A primeira e decisiva posição diz respeito à própria vida! Para seguir Jesus é necessário compreender e aceitar que o sentido da vida está na capacidade de doá-la por amor, torná-la fecunda, como ele mesmo diz: “Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem faz pouca conta de sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna” (v. 25). Jesus não está convidando seus seguidores a menosprezarem suas vidas ou suas existências terrenas; pede que lhe dêem sentido; esse sentido passa pela capacidade de não apegar-se tanto a ela, para que dela outras vidas também venham a ter sentido.
O convite ao seguimento é reforçado: “Se alguém me quer servir, siga-me, e onde eu estou estará também o meu servo. Se alguém me serve, meu Pai o honrará” (v. 26). Muitos querem ver Jesus ou receber explicações a seu respeito. Mas o próprio Jesus deixa claro que ele é inexplicável; para conhecê-lo e servi-lo é indispensável o seu seguimento. É importante essa responsabilidade: deve haver uma simbiose entre a comunidade e Jesus. Aqui o evangelista faz uma advertência muito séria: a comunidade tem a missão de, onde ela estiver, tornar presente Jesus e o Pai. Isso só é possível onde o servir e o seguir são de fato prioridades, tendo o amor por motivação.
Como o nosso texto antecede de imediato a narrativa da paixão, é muito oportuno que o evangelista ressalte a humanidade de Jesus: “Agora sinto-me angustiado! E que direi? ‘Pai, livra-me desta hora!’? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim” (v. 27). Dar a própria vida custa dor e sangue. Porém, mais forte que a dor e angústia foi a confiança no Pai e a certeza de que, daquele amor transbordante, muitas vidas novas surgiriam, muitos frutos brotariam. Foi de fato, para “esta hora” que ele veio; não para morrer tragicamente como aconteceu, mas para testemunhar o amor até as últimas consequências. Como o(s) príncipe(s) deste mundo (cf. v. 31) não o suportaram a irradiação do seu amor em demasia, eis que a “hora” se transformou em dor. O(s) príncipe(s) deste mundo: todas as forças de morte, toda oposição ao amor e à justiça; tudo o que se opõe ao Reino de Deus. Porém, o Pai deu a resposta definitiva: na mesma cruz em que morreu um corpo, dela irradiou-se amor como nunca antes visto.
No momento da angústia, a esperança e a confiança no Pai são reforçados:“Quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim” (v. 32). É claro que “ser elevado” diz respeito à crucifixão; àquela hora, já estava clara qual seria a sua pena: a cruz, como era para quem ousava desmascarar o sistema da época, comandado pelo(s) príncipe(s) deste mundo, na época os chefes religiosos e políticos, hoje em dia com muitas outras formas de expressão. Jesus sabia que o seu elevar-se na cruz seria tão frutífero quanto o enterrar um grão de trigo no chão: sementes haveriam de germinar; sementes de amor, justiça, solidariedade, inconformismo e fé.
Não obstante a dor e angústia, assim como Jesus, o cristão é convidado a crer que o sangue derramado por amor faz germinar; o amor tem uma força de atração indescritível. Como comunidade cristã, somos convidados a tornar Jesus conhecido e acessível através do nosso modo de viver, pelas nossas atitudes e pelo amor partilhamos. Só vê Jesus quem o segue e vive verdadeiramente o mandamento do amor.
Roma, 18/03/2018, Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues