Neste décimo sexto domingo do tempo comum, o Evangelho proposto pela liturgia é Marcos 6,30-34, texto localizado entre os relatos do martírio de João Batista (cf. Mc 6,14-29) e a primeira multiplicação dos pães (cf. Mc 6,35-44). Mesmo intercalando esses dois importantes relatos, o Evangelho de hoje está diretamente em continuidade com aquele que refletimos no domingo passado (cf. Mc 6,7-13): os discípulos enviados dois a dois retornam da missão e contam a Jesus a experiência vivida, ou seja, o que fizeram e ensinaram nos povoados da Galileia por onde passaram.
Entre o envio em missão e o retorno dos discípulos, o evangelista relata um episódio que, embora saltado pela liturgia, não pode ser ignorado: a execução de João Batista por ordem de Herodes. Esse acontecimento, sem dúvidas, marcou a vida de Jesus e da sua comunidade, tanto pelo afeto que os unia quanto pela certeza ele tinha de ser, dentro de pouco tempo, também vítima do poder imperial. Porém, diante das necessidades das multidões, Jesus não se omite nem se deixa amedrontar. Mesmo abalado pela morte do seu mentor, prossegue a sua missão ainda mais encorajado, tendo em vista as necessidades do povo abandonado como ovelhas sem pastor.
Olhemos para o texto, o qual diz que “Os apóstolos reuniram-se com Jesus e contaram tudo o que haviam feito e ensinado” (v. 30). Aqui está o elo de ligação entre o Evangelho de hoje e o do domingo passado: os apóstolos enviados retornam e contam tudo a Jesus. Essa é a única vez em que Marcos usa o termo apóstolos (em grego: avpo,stoloj – apóstolos), cujo significado literal é enviado. Nas outras ocasiões, o evangelista se refere aos discípulos mais próximos de Jesus apenas como os Doze, preservando o sentido original da palavra “apóstolos” como uma função, ao invés de considerar um título.
Como os Doze foram constituídos “para que ficassem com ele e para serem enviados a pregar” (cf. Mc 3,14), tendo retornado do envio, procuram logo“estar com Jesus”, a primeira necessidade e condição do ser discípulo. Como aquela fora a primeira experiência, obviamente tinham muito a contar sobre o que tinham feito e ensinado. “Reunir-se com Jesus” é uma necessidade para a comunidade perseverar e manter-se fiel aos seus ensinamentos. O evangelista recorda esse fato com muito interesse para a sua comunidade. Nas idas e vindas da vida e da missão, é necessário parar para estar com Jesus e confrontar com ele o que se faz e o que se prega. A comunidade cristã precisa ter tempo para constantemente confrontar suas ações, seu calendário e sua organização com a palavra de Jesus, os Evangelhos. Sem essa disposição, dificilmente manter-se-á fiel ao Evangelho.
Certamente, como era a do próprio Jesus, a missão dos apóstolos fora marcada pelas contradições que lhe são características: acolhida e rejeição, fé e incredulidade, elogio e difamação. A rejeição em Nazaré (cf. Mc 6,1-6) serviu de parâmetro para Jesus. Os discípulos, enquanto apóstolos, voltaram cansados e Jesus sentiu a necessidade do descanso. Por isso, “Ele lhes disse: vinde sozinhos para um lugar deserto e descansai um pouco” (v. 31a). Porém, o descanso proposto por Jesus não é um mero lazer, mas um aprofundamento nas convicções da vocação e da missão. Por isso, Jesus os chamou para um lugar deserto. Ora, na linguagem bíblica, o lugar deserto é propício para o encontro com Deus. Aqui, o descanso dos discípulos no deserto significa, além do necessário e importante repouso físico, a meditação das palavras de Jesus, a oração e a necessidade de renovar constantemente as convicções.
Não era fácil para Jesus nem para os discípulos reservar um momento de descanso e retirada em um lugar deserto, pois “Havia, de fato, tanta gente chegando e saindo que não tinham tempo nem para comer” (v. 31b). Essa é a segunda vez em que o evangelista afirma que a presença das multidões ao redor de Jesus e dos discípulos os impedem até mesmo de comer; a primeira vez, fora na casa, em Cafarnaum, logo após a constituição dos Doze (cf. 3,20). Isso mostra que Jesus não ignorava as pessoas com suas necessidades, o que lhe custava muitas renúncias. Porém, a necessidade do descanso dos discípulos e o tempo para “ficarem sozinhos” com ele é irrenunciável; a comunidade precisa ser ensinada a sentir a necessidade desses momentos.
Mesmo sendo difícil, “Então foram sozinhos, de barco, para um lugar deserto e afastado” (v. 32). O evangelista mostra a insistência de Jesus com os discípulos: a experiência do lugar deserto é indispensável, mesmo que não seja prolongada, tendo em vista as necessidades das pessoas. Na tradição profética, o deserto é o lugar onde “Deus fala ao coração” (cf. Os 2,16), por isso é indispensável para a comunidade fazer constantemente essa experiência. É importante ressaltar que, ao insistir com a ida ao lugar deserto, Jesus não estava fugindo do povo, nem induzindo os discípulos a fazerem o mesmo; pelo contrário, estava ressaltando a necessidade de aprofundar a experiência de Deus em suas vidas para compreender melhor as necessidades do povo e, assim, servir melhor.
Se antes, apenas com a pregação de Jesus, mesmo sofrendo rejeição em alguns lugares, as multidões já se aglomeravam ao seu redor (cf. Mc 2,1; 3,9.20; 4,1; 5,21), muito mais agora com a sua mensagem dilatada pela missão dos apóstolos. Isso tornava cada vez mais difícil encontrar o tempo necessário para a experiência irrenunciável do lugar deserto. Enquanto Jesus e os discípulos partiram de barco, “muitos os viram partir e reconheceram que eram eles. Saindo de todas as cidades, correram a pé, e chegaram lá antes deles” (v. 33). As multidões precedem a Jesus e aos discípulos no outro lado do lago. Saíam “de todas as cidades”, certamente, de onde tinham passado os Doze e de onde também Jesus já tinha passado.
Chegando ao destino, “ao desembarcar, Jesus viu numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas” (v. 34). Embora irrenunciável, a experiência do encontro do lugar deserto não pode se sobrepor às necessidades concretas das pessoas, principalmente das mais vulneráveis. Essa cena não pode ser ignorada pela comunidade que tem acesso ao Evangelho. O evangelista Marcos é muito econômico nas palavras: só utiliza a palavra compaixão em quatro ocasiões (cf. Mc 1,41; 6,34; 8,2; 9,22) que são situações de extrema necessidade. Ao invés de envaidecer-se com o aparente sucesso, pois as multidões o buscavam incansavelmente, Jesus sente compaixão. Compaixão quer dizer o amor profundo e máximo de Deus, que nasce das entranhas, comparável somente ao amor materno; literalmente, significa “contorcer as entranhas”, o núcleo mais profundo e íntimo do ser humano, conforme a mentalidade semítica.
O que fazia Jesus contorcer-se por dentro era a situação da multidão:“estavam como ovelhas sem pastor”. Essa comparação reflete o grau máximo de abandono e degradação do qual as multidões eram vítimas, e revela, ao mesmo tempo, a corrupção e hipocrisia dos dirigentes, tanto religiosos quanto políticos, a causa principal daquela situação. A imagem da ovelha é sinônimo de mansidão e vulnerabilidade; a ausência de um pastor que a conduza e proteja significa exposição aos perigos. A ausência de pastores que cuidem da multidão é uma nítida crítica aos dirigentes religiosos, principalmente.
O plano de retirar-se para um lugar deserto foi alterado porque havia uma necessidade ainda maior: cuidar das pessoas que estavam “como ovelhas sem pastor”, ou seja, exploradas e abandonadas pelos sistemas dominantes da época: a religião oficial judaica e o império romano. Assim como fez Jesus, também deve fazer a comunidade cristã em todos os tempos: ser flexível diante das situações que exigem ações concretas e urgentes. A necessidade da multidão fez Jesus alterar seu programa: “Começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas”. Ao contrário de Mateus que apresenta os diversos discursos de Jesus, Marcos apenas diz que Jesus ensinou, sem dar a conhecer o conteúdo. Porém, é sabido que seu ensinamento consistia no anúncio do Reino de Deus, marcado pelo convite à conversão para poder fazer parte desse Reino. Esse último versículo (v. 34) já introduz o episódio seguinte: o relato da primeira “multiplicação dos pães” (cf. Mc 6,35-44).
Embora curto, o Evangelho de hoje é bastante rico, como acabamos de refletir. Percebemos que, enquanto comunidade enviada por Jesus, é sempre necessário estar com ele e confrontar o anúncio e a práxis com aquilo que o Evangelho propõe. A comunidade não pode medir esforços nem pôr obstáculos aquilo que é essencial, incluindo o cuidado com as pessoas mais necessitadas. Se uma regra básica para o seguimento de Jesus é a disponibilidade para o serviço, as necessidades do próximo devem estar sempre em primeiro lugar, mesmo que sejam necessários sacrifícios para isso, como Jesus sacrificou o descanso dos discípulos que tinham acabado de chegar da missão.
Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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