A liturgia deste quinto domingo da quaresma dá uma pausa na leitura do Evangelho segundo Lucas, e propõe uma passagem do Quarto Evangelho: João 8,1-11. Esse texto, tão rico e precioso, teve uma história bastante turbulenta, desde as suas origens. Sobre isso, acenaremos brevemente, apenas a nível de contexto. Dando continuidade à temática central da espiritualidade quaresmal – o convite à conversão e sua respectiva necessidade – é importante perceber a dinâmica e a pedagogia de Jesus: ele não faz esse convite à partir de ameaças e ordens, mas revelando com clareza a misericórdia e o amor de Deus, através de palavras e atitudes. No domingo passado, essa misericórdia foi apresentada de maneira ilustrada, através da parábola do pai misericordioso e os dois filhos (cf. Lc 15,11-32). Hoje, a liturgia dá um passo a mais e mostra Jesus revelando a sua misericórdia, que é a mesma de Deus-Pai, com um gesto concreto, salvando uma mulher flagrada em adultério e prestes a ser apedrejada. Isso dá credibilidade ao seu ensinamento, pois mostra que ele viveu e praticou tudo o que ensinou.
Antes de olharmos diretamente para o texto, fazemos algumas breves considerações, a nível de contexto. Começamos pelo amplo debate criado ao longo da história da interpretação, sobre a origem e a posição desse texto no Evangelho segundo João. Nos quatro primeiros séculos, esse texto foi omitido, por ser considerado muito perigoso; isso se comprova pela sua ausência nos manuscritos da época. Ora, o adultério era um dos pecados mais abomináveis, tanto no judaísmo quanto no cristianismo das origens; na maioria das vezes, o perdão não era concedido às mulheres que praticavam; os homens, sempre conseguiam uma saída. Por isso, imaginavam não ser prudente mostrar Jesus perdoando esse tipo de pecado. O perdão de Jesus a uma mulher adúltera, poderia ser visto como incentivo a essa prática pelos líderes das primeiras comunidades, e uma relativização do pecado; a liderança das comunidades, por sinal, era exercida por figuras masculinas, o que facilitava a marginalização da mulher. Esse texto circulava como uma página isolada, e poucas pessoas tinham acesso a ele. Quando as comunidades chegaram à conclusão de que não poderiam mais escondê-lo, o colocaram no Evangelho segundo João, embora tudo indique que seja um texto originalmente de Lucas; diversos fatores contribuem para isso, principalmente o fato de ser Lucas o evangelho da misericórdia, por excelência, e aquele que mais valoriza a figura da mulher, além do vocabulário típico do Terceiro Evangelho. Porém, como nos foi transmitido no Evangelho de João, é a partir dele que devemos lê-lo.
Jesus se encontrava em Jerusalém, participando de uma das grandes festas dos judeus, a festa das tendas, com duração de uma semana (cf. Jo 7,2.14.37; 8,2). Durante o dia, ensinava no templo, e à noite se retirava para dormir fora da cidade: “Jesus foi para o monte das Oliveiras” (v. 1). No dia seguinte, “De madrugada, voltou de novo ao templo. Todo o povo se reuniu em volta dele. Sentando-se, começou a ensiná-los” (v. 2). A madrugada significa o rompimento das trevas, a aurora de um novo dia; nos evangelhos, essa expressão é um dado teológico, mais que cronológico; é sempre um aceno à ressurreição; é o momento em que as mulheres descobrirão o sepulcro vazio, no domingo da ressurreição (cf. Lc 24,1); portanto, o episódio que a liturgia propõe hoje é uma cena de ressurreição, é um texto pascal: a mulher flagrada em adultério, prestes a ser apedrejada, faz uma experiência de vida nova ao ser confrontada com a misericórdia, o perdão e o amor de Jesus.
Durante as festas, iam pessoas de todas as partes da Palestina para Jerusalém; era uma oportunidade para os pregadores itinerantes apresentarem suas doutrinas e versões na interpretação da Lei; esses se espalhavam pelos vastos átrios do templo, e os peregrinos iam se amontoando em círculos ao redor deles, conforme a curiosidade e a eloquência de cada pregador. Como a pregação de Jesus era sempre polêmica e crítica, talvez conseguisse juntar mais ouvintes que outros pregadores, pois ele não tinha medo de desmascarar a hipocrisia dos dirigentes, principalmente as autoridades religiosas da época. Ele dizia o que muita gente queria dizer, mas não dizia por medo de repressão. Isso, obviamente, fazia também com que as autoridades lhe vissem como suspeito, aumentando a vigilância sobre ele.
Enquanto ensina, Jesus é repentinamente interrompido: “os mestres da Lei e os fariseus trouxeram uma mulher surpreendida em adultério. Colocando-a no meio deles” (v. 3). Os sujeitos da ação são os tradicionais adversários de Jesus: mestres da Lei e fariseus, os fiéis observadores dos preceitos da Lei em seus mínimos detalhes, os mesmos que no domingo passado tinham criticado Jesus por acolher e comer com os pecadores (cf. Lc 15,2). Esses dois grupos são a síntese do fechamento e do conservadorismo na época de Jesus; pregavam um Deus punitivo, exigente, vingativo e, por isso, se escandalizavam com o Deus amoroso de Jesus. Ao colocarem a mulher no centro, eles a expõem à máxima humilhação. No Antigo Testamento, o adultério foi usado como sinônimo de idolatria, o principal pecado de Israel. Por isso, a lei era tão rigorosa com esse pecado. Na época de Jesus o adultério estava entre os piores pecados, comparável ao assassinato. Como os casamentos eram verdadeiros negócios, decididos pelos pais, às vezes os noivos só se conheciam no dia do próprio casamento, isso tornava o adultério uma prática bastante comum, embora perigosa, pois as relações não eram motivadas pelo amor, mas pelos interesses econômicos das famílias; por isso, havia muita vigilância, principalmente, sobre as mulheres.
Como representantes de uma religião severa e excludente, os mestres da Lei e os fariseus expõem somente a mulher. Eles tinham clareza do que a Lei prescrevia, mas pedem uma pena parcial, expondo e ridicularizando a mulher, e silenciando sobre o homem que, certamente, fora flagrado junto. Aqui, essa mulher é imagem de todas categorias de marginalizados e marginalizadas, por quem Jesus toma partido. Eles conheciam a sentença prevista: “Disseram a Jesus: Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Moisés, na Lei, mandou apedrejar tais mulheres. Que dizes tu?” (vv. 4-5). De acordo com a lei, o apedrejamento era a pena para o adultério quando o casamento ainda estava na primeira fase, a da promessa; porém, essa pena era prevista também para o homem envolvido na relação (cf. Dt 22,23-24). Como diz o próprio texto, o que eles queriam era colocar Jesus em situação embaraçante, pondo-o à prova (cf. v. 6a): se Jesus confirmasse o apedrejamento, estaria negando o seu lado misericordioso e contradizendo a sua pregação até então; se negasse o apedrejamento, estaria transgredindo a Lei de Moisés.
Conhecedor das intenções dos seus adversários, Jesus simplesmente os ignora, com a sua típica ironia: “Mas Jesus, inclinando-se, começou a escrever com o dedo no chão” (v. 6). Sobre esse gesto inusitado, foram levantadas diversas hipóteses sobre o que Jesus escreveu no chão, algumas até folclóricas. São Jerônimo, por exemplo, acreditava que Jesus escreveu os pecados dos acusadores que estavam com pedras na mão, para deixá-los envergonhados e constrangidos. Ora, se estavam no interior do templo, o piso ali não era de barro ou areia, mas de pedras; logo, não tinha como escrever nada ali. Portanto, qualquer hipótese sobre o conteúdo que Jesus escreveu nessa cena, carece de fundamento e de sentido. O gesto de Jesus é, além de irônico, denunciador. Ele olha para o chão por indiferença aos seus acusadores, enquanto pensa na atitude e na resposta adequada que dará. Não escreve nada, apenas simula uma escritura em pedra denunciando a rigidez da Lei por eles observada: uma lei escrita em tábuas de pedra, inflexível e dura como eram os corações deles.
Com a sua ironia e indiferença, Jesus deixava seus interlocutores impacientes: “Como persistiam em interrogá-lo, Jesus ergueu-se e disse: ‘Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra” (v. 7). Ao levantar-se para responder, Jesus dá um tom de solenidade à situação e, finalmente, chama para si a responsabilidade. Tendo pensado por um tempo, sua resposta é surpreendente: não toma posição sobre o caso, propriamente, não discute o pecado da mulher, mas convida cada um a olhar para si próprio, apelando para o tribunal da consciência: “Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”. Com essa proposta, Jesus desmascara e desarma os acusadores da mulher, e os falsos moralistas de todos os tempos. É uma resposta que não necessita de contra-resposta nem de novas perguntas, mas apenas da coragem de cada um olhar para si, para sua consciência. Certamente, deixou a todos em silêncio e pensativos, admirados e sem reação. Por isso, Jesus repete a ironia “E, tornando a inclinar-se, continuou a escrever no chão” (v. 8). Na primeira vez, simulou a escritura no chão enquanto ele mesmo pensava na sua resposta; dessa vez, faz a simulação enquanto aguarda uma atitude ou resposta dos acusadores.
Envergonhados, certamente, “eles, ouvindo o que Jesus falou, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos; e Jesus ficou sozinho, com a mulher que estava lá, no meio do povo” (v. 9). É interessante perceber a reviravolta na história: o objetivo dos mestres da Lei e fariseus era colocar Jesus em situação constrangedora, “num beco sem saída”; as coisas se inverteram e foram eles que ficaram embaraçados, em situação desconfortável. É provável que tenham saído ainda mais furiosos com Jesus, mas também a eles foi dirigido um convite à conversão. Jesus não os condenou; esse detalhe é importante que seja bem recordado. Jesus deu aos seus ferrenhos adversários uma oportunidade de conversão, convidou-os a um exame sincero de consciência. Não sabemos se houve conversão da parte deles, mas é possível identificar pelo menos dois sinais importantes: a vida da mulher foi poupada, e cada um reconheceu ser pecador, uma vez que nenhum atirou a pedra.
Percebendo que todos os acusadores saíram, em silêncio, no meio do povo que escutava seu ensinamento antes da interrupção, “Jesus se levantou e disse: ‘Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?’. Ela respondeu: Ninguém, Senhor. Então Jesus lhe disse: “Eu também não te condeno. Podes ir, e de agora em diante não peques mais” (vv. 10-11). É a primeira vez que a mulher acusada tem oportunidade de falar, e é Jesus quem lhe dá essa oportunidade. Essa voz da mulher é a sua própria vida recuperada. Jesus sabia que ninguém a tinha condenado; faz a pergunta apenas para torná-la protagonista. Todo ser humano tem direito e liberdade de expressão. Toda voz deve ser ouvida. Diante da fúria dos acusadores, essa mulher sentiu-se morta, com suas horas contadas. Diante de Jesus, ela se sente uma pessoa digna, pois sabe que tem quem lhe escute.
As palavras finais de Jesus constituem o ápice da cena e o motivo para esse texto ter sido considerado tão perigoso: “Eu também não te condeno”. Para uma religião segregadora, excludente e moralista, um Deus que não condena se torna um perigo e um problema, pois tira também da religião o direito de condenar. Não dá para pregar o Deus de Jesus fazendo ameaças, nem promovendo a violência ou destilando ódio. Para a religião praticada e proposta por Jesus, essa é uma das páginas mais consoladoras. Mais uma vez, se repete o esquema da parábola do pai misericordioso e os dois filhos: assim como o Pai não condenou o filho, Jesus não condena a mulher; a conversão vem depois: “vai e não voltes a pecar!”; não se trata de uma ordem ou imposição, mas de um encorajamento. Tendo se sentido acolhida e compreendida, talvez pela primeira vez em sua vida, com certeza aquela mulher se converteu.
Sem realizar nenhum sinal extraordinário, Jesus salvou uma vida. Apenas falando, Jesus fez aquela mulher passar da morte à vida; da fúria dos acusadores à ternura de Deus. O impacto da palavra de Jesus transforma situações. É essa Palavra que precisa ser ouvida, substituindo regras e preceitos, para mudar todas as estruturas perversas que impedem o triunfo da vida digna. Por isso, como afirmamos no início, o evangelho de hoje é uma cena de ressurreição, é um texto pascal. Que todas as comunidades possam, festivamente, celebrar a alegria de conhecer um Deus que não condena ninguém!
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN