Neste vigésimo terceiro domingo do tempo comum, a liturgia continua a nos situar na dinâmica do caminho de Jesus para Jerusalém. Como já sabemos, além do ato de caminhar, este caminho constitui-se como um itinerário catequético e teológico, composto pelos principais elementos da formação do discipulado de Jesus na perspectiva do evangelista Lucas, sendo também uma projeção antecipada da natureza missionária da comunidade cristã, a Igreja, a qual deve estar sempre em saída, apesar das dificuldades e perigos que a imagem do caminho/estrada representa. O texto evangélico de hoje – Lucas 14,25-33 – apresenta a retomada da caminhada propriamente dita, após uma parada num dia de sábado para o culto da sinagoga, provavelmente, e um almoço festivo na casa de um dos chefes dos fariseus, conforme vimos no evangelho do domingo passado (cf. Lc 14,1.7-14). Por sinal, a dinâmica entre a casa e a estrada representam uma dimensão importante no ministério de Jesus. Como os espaços institucionalizados eram hostis à sua mensagem, Ele improvisa e propõe a casa e a estrada como espaços alternativos para a difusão do seu Evangelho, sugestão que foi bem acolhida pelas primeiras comunidades cristãs, como o próprio Lucas mostrará no segundo volume de sua obra, o Livro dos Atos dos Apóstolos.
À medida em que avança em seu percurso rumo à Jerusalém, Jesus aprofunda o conteúdo da sua catequese, deixando cada vez mais claras quais são as exigências para o seu discipulado. O evangelho de hoje mostra Ele apresentando três condições indispensáveis para quem pretende ser seu discípulo ou discípula, formuladas por Lucas a partir de elementos comuns a outros evangelhos (Mateus, Marcos e alguns apócrifos), mas ilustradas por duas pequenas parábolas que são exclusivas do seu evangelho, o que confere a todo o texto um caráter de originalidade lucana. Conforme veremos na continuidade da reflexão, as condições que Jesus apresenta no evangelho de hoje não são meras sugestões, mas exigências indispensáveis ao discipulado, o que fica claro pela fórmula com a qual cada uma é concluída: “não pode ser meu discípulo” (vv. 26.27.33).
O primeiro versículo funciona como introdução, ao mesmo tempo em que recorda o contexto do caminho: “Grandes multidões acompanhavam Jesus. Voltando-se, ele lhes disse:” (25). É importante esse dado, pois mostra que tanto a mensagem quanto os atos de Jesus eram interpelantes, a ponto de atrair multidões. Ele impressionava a todos, tanto positivamente quanto negativamente. Porém, muita gente que o acompanhava não tinha clareza das exigências que o seu seguimento implicava, e Ele tinha consciência disso. Ora, ainda no início do caminho, Ele tinha chamado o seu grupo de “pequeno rebanho” (cf. Lc 12,32), sabendo que suas exigências eram complexas e não seriam assimiladas com facilidade. Por isso, ao ver muita gente perto de si, Jesus desconfia que houvesse equívoco de interpretação da sua mensagem, e procura esclarecer o que é necessário para alguém, não apenas caminhar consigo, mas tornar-se seu discípulo.
Como o discipulado tem suas exigências, e é necessário conhecê-las bem, para não tomar uma decisão precipitada e equivocada, Jesus esclarece quais são as principais. Eis a primeira: “Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (v. 26). Essa era uma das exigências mais sérias do discipulado de Jesus, considerando a importância e a sacralidade do clã para o mundo semita. Romper com os laços familiares era um grande desafio. Aqui, a tradução do texto litúrgico procura suavizar as palavras de Jesus, pois no texto original o evangelista emprega um verbo que corresponde a odiar – em grego: μισέω = missêo –, ao invés de desapegar, sendo que odiar na cultura semita significa também “amar menos”, e é esse o sentido atribuído pelo evangelista nesta passagem. É claro que Jesus não estimula a disseminação do ódio; o que Ele diz aqui, portanto, significa que para alguém entrar no seu discipulado é preciso amar menos do que a Ele até mesmo as pessoas mais caras que temos, como os familiares. A opção pelo Reino torna todo o restante relativo, inclusive a própria vida pessoal e familiar. A fórmula conclusiva da exigência, “não pode ser meu discípulo”, mostra que essa é uma condição indispensável: ou faz isso ou não entra no discipulado!
A segunda exigência é consequência da primeira, que já determinava a renúncia à própria vida, sendo ainda mais impactante, considerando o sentido da cruz aqui empregado: “Quem não carrega a sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (v. 27). Ora, tanto no tempo de Jesus quanto na época da redação dos evangelhos, a cruz não era um sinal sagrado como hoje, mas um sinal de condenação e maldição, aplicada às pessoas subversivas que ousavam contestar a “pax romana”. No contexto específico deste texto, a cruz significa perigo iminente de morte, e não a capacidade de suportar as provações e dificuldades do dia-a-dia com paciência e aceitação passiva, como algumas interpretações fundamentalistas pregam, transformando o Evangelho num discurso de resignação, quando na verdade é um manifesto de contestação ao(s) sistema(s). A disponibilidade para carregar a cruz significa, portanto, a disposição para entregar a vida por causa do Reino, e quem não tem essa disposição não pode ser discípulo ou discípula de Jesus. A cruz era o destino das pessoas inquietas, inconformadas e subversivas, e Jesus exige que seus discípulos sejam assim.
Intercalando as duas primeiras com a terceira exigência para o discipulado, Jesus conta duas pequenas parábolas para motivar os seus interlocutores à reflexão; ambas, visam ensinar que o discipulado, ou seja, a vida cristã, exige seriedade e não pode ser motivada por decisões repentinas ou emoções passageiras. Eis a primeira parábola: “Com efeito, qual de vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro e calcula os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar? Caso contrário, Ele vai lançar o alicerce e não será capaz de acabar. E todos os que virem isso começarão a caçoar, dizendo: Este homem começou a construir e não foi capaz de acabar!” (vv. 28-30). A opção pelo Reino, ou seja, pelo discipulado de Jesus, exige uma séria reflexão, sobretudo, no que diz respeito às consequências. O cálculo minucioso dos gastos que um construtor deve fazer antes de iniciar um empreendimento significa a consciência das exigências que o discipulado implica. É claro que o Reino não pode ser experimentado a partir de cálculos minimalistas, mas quem pretende ser discípulo ou discípula deve estar ciente, com clareza, do que condiz ou não com o seguimento de Jesus.
A segunda parábola tem o mesmo sentido da primeira: “Ou ainda: qual o rei que ao sair para guerrear com outro, não se senta primeiro e examina bem se com dez mil homens poderá enfrentar o outro que marcha contra ele com vinte mil? Se ele vê que não pode, enquanto o outro rei ainda está longe, envia mensageiros para negociar condições de paz” (vv. 31-32). Obviamente, o objetivo de Jesus com esse exemplo não é convocar os discípulos à promoção de guerra, tampouco compará-los a um rei. Assim como na primeira, o que Ele quer ensinar com essa parábola é a necessidade da reflexão antes de qualquer escolha. Independente da instância da vida, uma decisão equivocada traz, inevitavelmente, consequências danosas. Acompanhar Jesus sem ter clareza das exigências concretas que isso implica terminará em decepção, constrangimento e frustração pessoal.
Por fim, Ele apresenta a terceira condição: “Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo!” (v. 33). Jesus quer pessoas completamente livres no seu seguimento. O apego aos bens sempre foi um dos grandes obstáculos para isso; o fato por último entre as três condições, sendo preparado pelas duas parábolas, significa que era uma exigência mais desafiadora até mesmo do que o desapego à família. Ora, se trata de uma exigência que pressupõe uma confiança ilimitada na providência de Deus. As exigências anteriores, desapego à família e disponibilidade para a cruz, poderiam ser observadas até de maneira fingida, com meios termos, sendo possível voltar atrás, em caso de arrependimento. A renúncia aos bens, pelo contrário, não poderia ser remediada; uma vez renunciando-os, seria para sempre, já que essa atitude consistia em vender tudo o que possuía e distribuir aos pobres. Portanto, essa condição exige uma decisão irrevogável, sendo necessária uma reflexão mais aprofundada e séria, por isso, a necessidade das duas parábolas como introdução preparatória.
Como acenamos no início, pela fórmula conclusiva de cada uma das exigências – “não pode ser meu discípulo” – Jesus não está propondo sugestões, mas apresentando condições indispensáveis e inegociáveis para alguém fazer parte do seu discipulado. Diante disso, devemos refletir pessoalmente e comunitariamente se, na situação em que nos encontramos, com o que temos e o que somos, estamos sendo, de fato, discípulos ou discípulas de Jesus? A positividade ou negatividade da nossa resposta depende das renúncias e opções que fazemos.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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