Na continuidade da oitava do Natal, a Igreja celebra neste domingo a festa da Sagrada Família. Por estarmos vivenciando o “ano A” do ciclo litúrgico, o texto evangélico é retirado de Mateus, especificamente da parte introdutória que convencionalmente chamamos de “evangelho da infância”, correspondente aos dois primeiros capítulos, os quais funcionam como introdução e síntese de todo o seu Evangelho, como acontece também com o Evangelho de Lucas. O trecho lido hoje – Mt 2,13-15.19-23 – contém dois episódios, bastante conexos entre si: a fuga de José, Jesus e sua mãe para o Egito (vv. 13-15), e o respectivo retorno dos três (vv. 19-23). Como se vê, a liturgia preferiu saltar alguns versículos entre os dois episódios (vv. 16-18), correspondentes ao relato da matança dos inocentes a mando de Herodes, o que foi o motivo da fuga de José com o menino e a mãe para o Egito.
De todos os evangelistas, Mateus é aquele que mais recorre ao Antigo Testamento para construir a sua “história de Jesus”, empregando, inclusive, os métodos de interpretação usados pelos rabinos do seu tempo, embora com uma finalidade diferente. Os rabinos ligados ao judaísmo oficial usavam passagens do Antigo Testamento para negar que Jesus fosse o Messias e Filho de Deus. Mateus, por sua vez, buscava passagens para confirmar e afirmar Jesus como o Messias, procurando constantemente colocá-lo em paralelo com os principais personagens da história de Israel, principalmente com Moisés. Insiste em apresentar Jesus como o messias anunciado e prometido pelos profetas. Isso acontece em todo o seu Evangelho, mas com mais intensidade no “evangelho da infância” (cc. 1 – 2). O trecho lido hoje é uma clara demonstração disso.
A principal motivação para o evangelista fazer isso foi a realidade e a composição das suas comunidades, formadas predominantemente por cristãos que tinham saído do judaísmo e necessitavam de provas escriturísticas de que Jesus era mesmo o Messias esperado e Filho de Deus. Na época da redação do Evangelho, essas comunidades também viviam um período muito difícil, perseguidas pelo império romano e o judaísmo oficial. Para fortalecê-las, o evangelista apresenta Jesus sendo perseguido desde os seus primeiros dias de vida, como mostra o evangelho de hoje, um aspecto que Lucas não enfatiza em seu relato da infância.
Feita a introdução contextualizada, olhemos para o texto: “Depois que os magos partiram, o Anjo do Senhor apareceu em sonho a José e lhe disse” (v. 13a). Temos novamente a figura do Anjo que aparece em sonho a José; o mesmo tinha acontecido quando ele descobriu a gravidez de Maria e pensava abandoná-la em segredo (cf. Mt 1,19). A expressão “Anjo do Senhor” é uma forma suavizada para falar de Deus mesmo. Como a mentalidade hebraica concebia Deus como alguém muito distante e o ser humano incapaz de comunicar-se com ele, usava-se a imagem de um ser intermediário, como um anjo. Já o sonho, na mentalidade bíblica, e sobretudo em Mateus, significa a disposição interior para compreender a vontade de Deus e colocá-la em prática. O evangelista aproveita a ocasião também para fazer um paralelo entre o esposo de Maria e o patriarca José, o penúltimo filho de Jacó, habilidoso em sonhar e interpretar sonhos (cf. Gn 37; 40 – 41), de acordo com o livro do Gênesis, o qual também salvou a vida dos descendentes de Israel, levando-os para o Egito numa época de carestia.
Através do anjo, o Senhor dá uma ordem a José: “Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise! Porque Herodes vai procurar o menino para matá-lo” (v. 13b). A primeira informação evidenciada aqui é a proteção constante de Deus na vida de Jesus, sendo também uma antecipação do seu ministério como oposição ao poder estabelecido. O evangelista está alertando que, desde o início, Jesus e seu projeto libertador são insuportáveis para todo e qualquer sistema de dominação sustentado pelo uso da força e poderio econômico, causas diretas das principais injustiças. É nítida aqui também a intenção do evangelista de comparar Jesus com Moisés: ambos, quando ainda eram crianças, foram alvos da fúria de governantes violentos e injustos; o que Herodes faz é semelhante ao que o faraó do Egito fez na época de Moisés, ordenando que todos os meninos hebreus fossem mortos (cf. Ex 1,22 = Mt 2,16). É claro que, além da continuidade, o principal objetivo do evangelista ao comparar Jesus com os personagens do Antigo Testamento é demonstrar a sua superioridade. Isso será feito no decorrer de todo o Evangelho, e teremos a oportunidade de perceber isso ao longo do ano litúrgico.
Ao longo de todo o seu “evangelho da infância”, Mateus apresenta José como exemplo de abertura e obediência à vontade de Deus, constituindo-o como modelo antecipado de discípulo. Por isso, à recomendação do anjo, temos a imediata resposta de José: “José levantou-se de noite, pegou o menino e sua mãe, e partiu para o Egito” (v. 14). Os verbos “levantar-se”, “pegar (o mesmo que ‘tomar consigo’)” e “partir/entrar”, que formam um refrão neste texto (vv. 13-14.20-21), tanto como ordem do anjo quanto como execução da parte de José, conforme indica o narrador, são aqui uma síntese do discipulado de Jesus, e fazem deste trecho um verdadeiro tratado missionário. Mesmo sem dizer uma única palavra, José é aqui apresentado como autêntico e fiel discípulo missionário: o seu agir é todo conforme a Palavra de Deus. Na recomendação do anjo e no cumprimento por José é delineado também um ordenamento para a comunidade: Jesus, o menino, está sempre no centro: José – o menino – a mãe. José e a mãe, cujo nome não vem aqui mencionado, são aqui as imagens do antigo Israel que converge para Jesus, e também a imagem da comunidade cristã que será construída no decorrer do Evangelho. Eles só se inserem na história da salvação em função de Jesus. Logo, no centro de uma comunidade não pode estar outro senão Jesus Cristo.
Para a conclusão do primeiro episódio, o evangelista insere uma citação do profeta Oséias (Os 11,1): “Ali ficou até a morte de Herodes, para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: ‘Do Egito chamei o meu Filho’” (15). A morte de Herodes é o evento demarcatório de que o perigo diminuiu, pelo menos por enquanto, pois a sequência do texto mostrará o contrário. Na maioria das citações explícitas dos profetas, Mateus diz apenas “para se cumprir o que disse o profeta”; em algumas, nas mais importantes, como essa, ele diz “para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta”; assim, ele coloca as palavras na boca de Deus, para demonstrar que quem chamou Jesus de Filho foi próprio Deus. O Filho ao qual Oséias se refere é povo de Israel, recordando o êxodo. Aplicada a Jesus, a citação antecipa a confissão da sua filiação divina para a comunidade de Mateus. O evangelista afirma aqui a messianidade de Jesus como Filho de Deus, o que será reafirmado no decorrer do Evangelho, especialmente na cena do batismo (Mt 3,17) e na confissão de Pedro (Mt 16,16).
Tendo omitido os versículos da “matança dos inocentes” (vv. 16-18), o texto continua com o dado da morte de Herodes e uma nova aparição do Anjo do Senhor a José (v. 19), com uma nova ordem: “Levanta-te, pega o menino e sua mãe, e volta para a terra de Israel; pois aqueles que procuravam matar o menino já estão mortos” (v. 20). A ordem para voltarem à terra de Israel, saindo do Egito, alude à ordem de Deus a Moisés, quando estava refugiado em Madiã: “Vai, volta ao Egito, porque aqueles que queriam te matar estão mortos” (Ex 4,19). Embora no texto de Mateus o movimento seja o contrário, ou seja, é do Egito que devem partir, o objetivo é atualizar a experiência do êxodo. Mesmo sendo José o executor das determinações de Deus por meio do anjo, é Jesus o motivo de tudo. Assim, o evangelista o apresenta como o libertador definitivo, não apenas de Israel, mas de toda a humanidade. Aqui, temos também um elemento novo: antes, era apenas Herodes quem queria matar Jesus recém-nascido (v. 13); agora, o evangelista diz “aqueles que procuravam matar”. Portanto, é uma antecipação do complô final formado pelos poderes político e religioso de Jerusalém, que levará Jesus à cruz.
Novamente, José fez a vontade de Deus. O evangelista não se cansa de repetir que tudo o que José faz é conforme o dizer de Deus: “José levantou-se, pegou o menino e sua mãe, e entrou na terra de Israel” (v. 21). A entrada na terra de Israel é a realização parcial do novo êxodo, o qual será consumado com a ressurreição. Como o poder dominante usa de todos os métodos para se perpetuar, a morte de um tirano não significa melhora na vida do povo. É um poder que passa de pai para filho com os mesmos métodos. Por isso, mesmo após a morte de Herodes Jesus corria perigo: “Mas quando soube que Arquelau reinava na Judeia, no lugar de seu pai Herodes, teve medo de ir lá. Por isso, depois de receber um aviso em sonho, José retirou-se para a região da Galileia” (v. 22). Novamente, Deus intervém em favor de Jesus e da comunidade reunida em seu redor, prefigurada por José e Maria. Deus protege, mas o ser humano participa da contínua libertação. Em momento algum o evangelista diz que Deus os transportou de um lugar para outro. Apenas iluminou com a Palavra. A iniciativa de partir de um lugar para outro foi sempre de José, ou seja, do agente humano. É assim também que deve fazer a comunidade cristã: à luz da Palavra, tomar iniciativas de libertação; não repetindo as práticas do opressor, mas criando e propondo alternativas de vida. A ida dos três para a desprezada região da Galileia é uma prova disso. É de lá que o Reino será, posteriormente, anunciado e iniciado por Jesus (cf. Mt 4,14).
Toda a história dramática até aqui apresentada teve como objetivo principal levar Jesus para Nazaré, ou seja, para as margens: “E foi morar numa cidade chamada Nazaré. Isso aconteceu para se cumprir o que foi dito pelos profetas: ‘Ele será chamado Nazareno’” (v. 23). Ora, toda a Galileia era discriminada pela elite de Israel, sobretudo pela pouca ortodoxia do seu povo. Inclusive, era chamada de “Galileia dos pagãos” (cf. Mt 4,15). E parece que Nazaré era a pior das cidades que havia lá. Na verdade, Nazaré era apenas uma aldeia de menos de quinhentos habitantes; seu nome não é citado uma única vez no Antigo Testamento. O evangelista se arriscou até a usar uma profecia “inexistente”, para explicar a ida de Jesus para lá. Nenhum texto do Antigo Testamento fala de um “nazareno”; já foram feitas várias explicações para esta referência, mas nenhuma convincente. A maior prova da má fama de Nazaré na época de Jesus é dada pelo evangelista João: “De Nazaré pode sair coisa boa?” (Jo 1,46). No entanto, foi lá que Deus escolheu para dar início ao seu Reino. Assim, o evangelista conclui o seu “evangelho da infância”, delineando a missão de Jesus e a sua identificação com tudo o que é marginalizado e descartado. Para Mateus, portanto, é das margens que brota a libertação de toda opressão e injustiça. Os centros de poder são sempre ameaça à liberdade, à justiça e, consequentemente, ao Reino de Deus.
Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN