O Evangelho deste quarto domingo do advento – Mateus 1,18-24 – nos convida a contemplar os últimos acontecimentos que antecederam o nascimento de Jesus, de acordo com o Evangelho de Mateus. Tudo gira em torno da inesperada gravidez de Maria, pelo Espírito Santo, o embaraço criado em José, e a providência divina na resolução do problema criado. Ao contrário de Lucas, que evidencia mais a figura de Maria, na narrativa mateana o personagem humano que se destaca neste contexto do nascimento de Jesus é José, sendo ele o destinatário do anúncio divino. É importante recordar que, mais do que descrever fatos, o autor quer mostrar que a vinda de Jesus Cristo não é obra humana, e que, através dessa vinda, Deus faz uma forte interrogação de Deus à humanidade. De fato, à humanidade, representada no texto por José, é lançada uma proposta de vida e libertação, tendo ela a liberdade de acolher ou não.
O texto inicia com um enunciado bastante rico de informações: “A origem de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a um homem chamado José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo” (v. 18). Tudo o que será desenvolvido nos versículos seguintes gira em torno desse primeiro enunciado. Além das informações explícitas no texto, também as implícitas são importantes; por isso, é necessário fazermos um percurso passo a passo.
O primeiro passo necessário para compreender melhor a “origem” de Jesus Cristo é recordar a “genealogia” apresentada nos versículos anteriores (Mt 1,1-16), na qual prevalece a fórmula “A gerou B”, com o uso predominante do verbo gerar (em grego: γεννάω – ghennáo) aplicado aos grandes personagens da história de Israel, desde Abraão, terminando com o desconhecido Jacó, o pai de José. Para falar do nascimento de Jesus, o evangelista abandona a fórmula “A gerou B”, e apenas diz que ele nasceu de Maria, esposa de José. Com isso, o ele quer mostrar que, mesmo inserido na história do povo eleito, Jesus provoca rupturas com os esquemas tradicionais desde a sua concepção. Nenhuma tradição religiosa ou estrutura familiar e social conseguem controlar a pessoa de Jesus e sua mensagem libertadora.
Devemos ver este primeiro versículo, portanto, como um elemento de ruptura: a origem de Jesus é, ao mesmo tempo, a origem de uma nova humanidade, uma nova criação e, portanto, de novas relações. Ao afirmar que Jesus não foi gerado por José, o evangelista está dizendo que Ele não está atrelado a nenhuma estrutura familiar, é independente, ou seja, ninguém terá domínio sobre Ele. Com isso, quebram-se os paradigmas da sociedade patriarcal fundada no clã e no domínio do masculino. Aqui, o Reino dos Céus, nome dado por Mateus ao que os outros sinóticos chamam de Reino de Deus, o conteúdo da pregação de Jesus, começa a ser delineado como uma sociedade alternativa, em contraposição às antigas instituições, principalmente a familiar patriarcal.
O segundo passo necessário é compreender o contexto, recordando a estrutura do casamento judaico no tempo de Jesus, como recurso para entender o significado da expressão “Maria estava prometida em casamento a José” (v. 18b). Ora, isso quer dizer que, de fato, eles já estavam casados. O casamento se realizava em duas etapas: a primeira, a da promessa, consistia no compromisso firmado entre os noivos e suas respectivas famílias, inclusive com assinatura de contrato, não podendo mais ser dissolvido, a não ser por motivo grave. Essa etapa durava aproximadamente um ano, cada um ainda morava com os pais e não podiam ainda ter relações sexuais; como casava-se muito jovem, as mulheres tinham entre 12 e 13 anos nessa etapa, e os homens entre 16 e 18 anos. Essa foi a fase vivida por Maria quando ficou grávida: embora ainda não vivessem juntos, já estavam literalmente casados. A segunda etapa do casamento iniciava-se quando os esposos passavam a viver juntos. Essa etapa era marcada por uma grande festa que durava cerca de uma semana, sendo que na primeira noite da festa já havia a consumação: ou seja, a relação sexual.
Diz o texto que “antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo” (v. 18c). Trata-se de um fenômeno extraordinário e inexplicável, como, de fato, são os planos de Deus. A originalidade de Jesus começa exatamente aqui: gerado pelo Espírito Santo, sem a participação da figura masculina, marcando, assim, uma ruptura total com a sociedade patriarcal. Isso será confirmado pelas palavras do próprio Jesus a seus discípulos, posteriormente: “Na terra, não chamem a ninguém de Pai, pois um só é o Pai de vocês, aquele que está no céu” (Mt 23,9). Ora, a figura do pai na família patriarcal, como expressão de autoridade máxima, era um impedimento à construção de uma comunidade igualitária. Por isso, Jesus faz de tudo para tirar essa figura do horizonte da comunidade de discípulos. Assim, mais do que a contemplar um nascimento prodigioso, o evangelista nos convida a aderir às novas relações inauguradas com esse nascimento. É o surgimento de um mundo novo e um novo tempo.
A sequência do texto, como desenvolvimento do primeiro versículo (v. 18), apresenta o esposo de Maria com boas credenciais: “José, seu marido, era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria, em segredo” (v. 19). Uma informação que o texto não traz de modo explícito, mas implicitamente devemos imaginar, é a forma como José tomou conhecimento da gravidez de Maria. É necessário percebermos o vácuo entre o versículo 18 e o 19 para imaginarmos essa cena: o texto diz que ela ficou grávida do Espírito Santo (v. 18) e, em seguida, que José, como homem justo, não quis denunciá-la (v. 19), mas não diz como ele ficou sabendo. É muito provável que Maria mesma tenha lhe contado. Aqui, recordemos que o anjo do Senhor só entra em cena quando José pensa em abandoná-la. O plano de abandoná-la prova que a explicação de Maria não fora convincente. Reconstruir essas entrelinhas do texto é essencial para acolhermos melhor a mensagem do texto.
Como “José, seu marido era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria em segredo” (v. 19). Aqui, ao afirmar que José era esposo, mais uma vez se confirma a informação de que os dois já eram casados, embora ainda na primeira etapa do casamento. Mas, o centro do versículo é o adjetivo atribuído a José: justo (em grego: δίκαιος – dikaios), o que confirma, ainda mais, a revolução de valores apresentada por Mateus. Ora, o que caracterizava um judeu como “justo” era a observância minuciosa e exata da Lei, e aqui, José é considerado justo por recusar-se a aplicar a lei que recomendava o apedrejamento para a mulher que engravidasse de outro na primeira etapa do casamento, a fase da promessa (cf. Dt 22,23-27).
O plano de abandonar Maria em segredo mostra que José já tinha compreendido o sentido verdadeiro da Lei, da qual Jesus será constituído o intérprete oficial, credenciado pelo Pai (cf. Mt 5,17-48), ao trocar o mero preceito pela misericórdia. De fato, abandonar Maria em segredo quer dizer que ele se recusou a expô-la publicamente, rompeu com a sinagoga ao não buscar testemunhas entre os anciãos da sua cidade para testemunharem o divórcio e o consequente apedrejamento, como era o costume. Certamente, uma grande crise envolveu José, levando-o a muitas reflexões e discernimento.
Como Deus tinha agido em Maria, também agiu nele: “Enquanto José pensava nisso, eis que o anjo do Senhor apareceu-lhe, em sonho, e lhe disse: ‘José, Filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa, porque ela concebeu pela ação do Espírito Santo” (v. 20). Certamente, ele não tinha acreditado plenamente na explicação de Maria, ficando na dúvida e amadurecendo a ideia de abandoná-la. Algo de extraordinário se apresenta, com a expressão “eis que”. Sempre que essa fórmula de introdução “eis que” aparece no Novo Testamento, é sinal de que a informação que lhe segue é uma novidade e tem grande importância; é sempre algo surpreendente. De fato, é muito importante a intervenção de Deus através do anjo, seu mensageiro, personagem relevante para a mentalidade judaica, considerando a distância entre Deus e os seres homens e, portanto, muito propícia para a existência de um ser intermediário. Assim, a expressão “anjo do Senhor” significa o próprio Deus; os autores bíblicos a empregam para diminuir o impacto de uma intervenção direta de Deus na vida do ser humano.
As palavras do anjo são encorajadoras e convidam José a participar diretamente da nova humanidade criada por Deus, recebendo Maria como esposa, ou seja, levando o casamento à segunda etapa. Mas, ao mesmo tempo deixa claro que ele não terá nenhum domínio sobre o menino, uma vez que Maria concebeu pelo Espírito Santo. A José, cabe um papel, por sinal muito relevante: “Ela dará à luz um filho, e tu lhe darás o nome de Jesus, pois ele vai salvar o seu povo dos seus pecados” (v. 21). Na Bíblia, o nome significa a identidade e a própria essência da pessoa. Como o nome Jesus significa “Deus salva”, isso já indica a sua missão: salvar o seu povo de seus pecados. Essa informação é carregada de significado e, mais uma vez, expressa a novidade de Jesus. Ora, esperava-se um Messias para condenar o povo por causa dos pecados; Jesus vem salvar o povo dos seus pecados, o que significa libertar o povo das injustiças e dos erros, individuais e comunitários, inclusive do sentimento de culpa por erros do passado, o que tanto pesava sobre o povo judeu. Isso Jesus fará muito bem ao longo do seu ministério, com sua práxis libertadora.
Como é típico dos evangelhos, e mais ainda de Mateus, o uso de textos e expressões do Antigo Testamento é imprescindível, sobretudo em momentos marcados pela dúvida e o medo. Por isso, o autor recorre ao profeta Isaías com o “oráculo do Emanuel” (Is 7,14) para confirmar que o fato presente tem respaldo na história da salvação: “Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: ‘Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho. Ele será chamado de Emanuel, que significa Deus está conosco’” (v. 23). Mais do que cumprimento de promessa e atestado da virgindade de Maria, a citação do profeta quer evidenciar que é necessário buscar referências nas Sagradas Escrituras para a construção da história e a compreensão do presente e, sobretudo, para afirmar no que consiste o nascimento de Jesus: a presença definitiva de Deus Conosco, ou seja, o divino veio definitivamente ao encontro da humanidade para habitar em seu meio. Como se sabe, nem a criança anunciada por Isaías, provavelmente o rei Ezequias, herdeiro do trono de Acaz, e nem Jesus receberam o nome de Emanuel. Esse nome expressa um traço característico de Deus: ele está próximo da humanidade, ou seja, está conosco.
Com a citação de Isaías 7,14, Mateus apresenta uma das principais chaves de leitura de sua grande obra: Deus está presente no dia-a-dia da comunidade. Por isso, o seu Evangelho pode ser considerado o “Evangelho da presença”, pois do começo ao fim, essa presença é evidenciada: no início, com o anúncio do anjo (cf. 1,23), no discurso sobre a vida em comunidade, quando Jesus promete ficar junto “quando dois ou mais se reunirem em seu nome” (cf. 18,20), e no final, nas últimas palavras do Ressuscitado, quando promete estar com os discípulos para sempre, até o fim dos tempos (cf. 28,20). À comunidade, de outrora e de hoje, foi conferida a responsabilidade de manifestar essa presença com o anúncio e o testemunho, sobretudo.
Após o anúncio do anjo, o evangelista diz que “José fez conforme o anjo do Senhor havia mandado e aceitou sua esposa” (v. 24). Ao invés de seguir a letra morta da Lei, José obedeceu à Palavra dinâmica de Deus, anunciada pelo anjo, antecipando o que Jesus recomendará aos seus discípulos (cf. Mt 5,17-48; 9,13). José percebeu que Deus não estava mais na antiga Lei, mas está conosco, no próximo que necessita de acolhida e compreensão; enfim, está com a humanidade inteira caminhando, sonhando e lutando, porque é EMANUEL!
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues