O evangelho proposto pela liturgia do vigésimo quinto domingo do tempo comum (ano a) é Mt 20,1-16, texto que compreende a parábola que pode ser chamada de “parábola dos trabalhadores da vinha” ou do “proprietário da vinha” ou, ainda, do “patrão generoso”. É uma parábola exclusiva do evangelista Mateus e, por ser tão rica de conteúdo, é difícil atribuir-lhe um título adequado. O mais importante, no entanto, não é a atribuição de um título, mas a assimilação da sua rica mensagem. Essa é mais uma “parábola do Reino dos Céus”. Porém, é importante recordar que uma parábola é sempre uma comparação, e não propriamente a descrição de uma realidade.
Antes de adentrarmos diretamente no texto, é importante conhecer o seu contexto, tendo em vista uma compreensão mais adequada. O contexto geral é o da viagem de Jesus com seus discípulos para Jerusalém (Mt 19–20). Olhando para o Evangelho em seu conjunto, percebe-se que quanto mais Jesus se aproximava de Jerusalém, mais necessidade tinha de instruir seus discípulos sobre a natureza do Reino que ele estava propondo. Ora, os discípulos e as multidões que seguiam Jesus continuavam sonhando com a restauração do reino davídico-salomônico e, por isso, tinham dificuldades de compreender e aceitar o Reino que ele proponha. Diante da incompreensão e resistência dos discípulos, sobretudo, Jesus procurava cada vez mais apresentar as particularidades do Reino dos Céus e a mudança de mentalidade que esse exigia para ser assimilado e construído. Por isso, a catequese de Jesus aos discípulos é praticamente toda voltada para a dinâmica do Reino.
Considerando o conteúdo e a posição da parábola de hoje na dinâmica narrativa do Evangelho segundo Mateus, podemos concluir que ela se constitui como o ápice do ensinamento de Jesus aos discípulos sobre o Reino dos Céus. Ele continuará ensinando em Jerusalém, mas ali os destinatários e interlocutores primeiros já não serão exclusivamente os discípulos, e sim os fariseus, saduceus, doutores da lei e sacerdotes, ou seja, as lideranças e os principais movimentos religiosos da época. Portanto, o ensinamento exclusivo aos discípulos é praticamente concluído com esta parábola. Recordemos, então, o que antecede à parábola, para melhor compreendê-la: o encontro de Jesus com o jovem rico (19,16-22) e a reação dos discípulos ao desfecho desse encontro (19,23-30). A parábola que lemos hoje é, portanto, a resposta de Jesus a essas duas situações, principalmente à pergunta de Pedro: “E nós que deixamos tudo e te seguimos, que recompensa teremos?” (19,27).
Percebendo a falta de coragem do jovem rico para o despojamento e seguimento, Pedro quis tirar vantagem da situação, insinuando serem os primeiros discípulos merecedores de privilégios. Jesus lhe assegurou que não ficará sem recompensa quem deixar tudo para segui-lo, mas não promete privilégios, uma vez que “Muitos dos primeiros serão últimos, e muitos dos últimos serão primeiros” (19,30). Ora, essa expressão proverbial corresponde ao último versículo do capítulo 19 e a parábola começa no primeiro versículo do capítulo 20. Ao concluir a parábola, Jesus repete essa mesma máxima, embora modificando a ordem: “Os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (20,16). A parábola é, portanto, uma explicação ilustrada desse pensamento que propõe uma reviravolta na história, uma inversão total da ordem vigente, começando pela maneira de conceber as relações com Deus. E os primeiros necessitados dessa explicação são os próprios discípulos.
Feita a contextualização, podemos voltar a atenção diretamente para o texto, recordando que, pela extensão, não comentamos cada versículo, mas procuramos colher a mensagem central. Assim começa o texto: “O Reino dos Céus é como a história de um patrão que saiu de madrugada para contratar trabalhadores para a sua vinha” (v. 1). Como se vê, Jesus está introduzindo uma parábola do Reino dos Céus, e isso confere ao texto um grau de importância considerável, tendo em vista a centralidade do Reino em sua pregação. As parábolas apresentam imagens comparativas do Reino, e não descritivas. Como o Reino consiste em um mundo novo, uma sociedade alternativa, completamente diferente das sociedades humanas até então experimentadas, ele não pode ser descrito, uma vez que ainda não fora experimentado. Em relação ao protagonista da parábola, ao invés do termo patrão, como traz o texto do lecionário, é mais adequada a expressão “dono da casa” ou “pai de família”, uma imagem mais suave e mais fiel ao termo empregado pelo evangelista na língua original (em grego: οἰκοδεσπότῃ – oikodéspote).
Desde o Antigo Testamento, Deus é apresentado como o dono de uma vinha (Is 5,1-7). Logo, a vinha uma imagem clássica do povo de Deus, Israel, e passa a ser imagem também da comunidade cristã. Chama a atenção o fato de ser o próprio proprietário a sair em busca de operários para a vinha. Ele não manda um encarregado, mas vai pessoalmente. Com esse detalhe, Jesus acena para a ilegitimidade da mediação dos líderes religiosos do seu tempo, principalmente o sacerdócio do templo. Os chefes religiosos do seu tempo não tinham legitimidade para falar em nome de Deus, até porque tinham distorcido a sua imagem, transformando o Deus Pai que ama e cuida num patrão vingativo e castigador. A imagem do “dono da casa” da parábola, portanto, se aproxima do “Deus Conosco” que Jesus veio revelar (Mt 1,23; 18,20; 28,20). É uma imagem que se aproxima também daquela do “Pai misericordioso” da chamada “parábola do filho pródigo” de Lucas (Lc 15,11-32), pois não recompensa conforme os méritos, mas age por pura bondade e gratuitamente.
O proprietário demonstra um zelo ímpar para com a sua vinha: sai diversas vezes durante o dia em busca de trabalhadores: pela madrugada (v. 1), às nove da manhã (v. 3), ao meio dia (v. 5), às três (v. 5) e às cinco da tarde (v. 6). O contato interpessoal do proprietário com os operários contratados deixa ainda mais clara as novas relações entre a humanidade e o Deus da vida que Jesus revelou. Um Deus presente, realmente “Conosco”, como apresenta Mateus ao longo de todo o seu Evangelho (1,23; 18,20; 28,20). Um Deus que chama porque ama, que confia a construção do seu Reino a todos os que encontra parados nas praças, calçadas, estradas, porque nunca foram reconhecidos por ninguém. E, ao chamar, esse Deus não pede currículo algum, porque sua intenção é a inclusão: ele não quer que ninguém fique fora do seu Reino, ao contrário da religião que segregava e excluía, ao classificar as pessoas entre justos e pecadores.
Ao contrário do sistema vigente na época de Jesus e no período da redação do Evangelho segundo Mateus, no Reino por ele anunciado, não há lugar para a competitividade, nem para a meritocracia. É claro que nem todos conseguiam assimilar com facilidade essa nova mentalidade inclusiva: a passagem da religião da lei para a da misericórdia, da bondade. Essa dificuldade é demonstrada na parábola pela reação dos primeiros contratados no momento do pagamento. Ora, ao pagar primeiro aos últimos contratados, e dar-lhes o mesmo valor dado aos contratados ainda na madrugada, o patrão inverteu completamente a lógica da economia, fez uma reviravolta total nas relações: ao invés de agir conforme a lei, ele agiu com misericórdia e bondade. E isso deixou furiosos aqueles que tinham sido contratados primeiro, como diz o texto: “ao receberem o pagamento, começaram a resmungar contra o patrão: ‘Estes últimos, trabalharam uma hora só, e tu os igualaste a nós, que suportamos o cansaço e o calor o dia inteiro’” (vv. 11-12). O patrão tinha duas opções: agir conforme a lei e, assim, perpetuar a desigualdade, ou agir pela bondade e, assim, promover a igualdade. Como preferiu a segunda opção, foi contestado.
Com a reação dos primeiros contratados, Jesus denuncia a mentalidade competitiva entre os discípulos e, ao recordar isso, Mateus também denuncia a situação da sua comunidade, composta predominantemente por cristãos provindos do judaísmo. Esses, reivindicavam vantagens e privilégios sobre os cristãos convertidos do paganismo. Como os primeiros contratados da parábola que alegavam ter suportado cansaço e calor, os cristãos de origem judaica alegavam conhecer e observar a lei e os profetas, imaginando que isso lhes daria privilégios dentro da comunidade, por serem os verdadeiros herdeiros das antigas promessas. Esse comportamento se assemelha ao do filho mais velho na parábola do “Pai misericordioso” ou “Filho pródigo” de Lucas (Lc 15,11-31), de modo que podemos equipará-las na ênfase à misericórdia do Pai revelada por Jesus, como já acenamos anteriormente.
A reação do patrão ao murmúrio dos primeiros contratados é a clara denúncia de Jesus e de Mateus às pessoas religiosas que queriam controlar o agir de Deus, prendendo-o a doutrinas e normas: “Por acaso não tenho o direito de fazer o que quero com aquilo que me pertence? Ou estás com inveja porque estou sendo bom?” (v. 15). O desconforto de uma religião sustentada pela mentalidade meritocrática, retributiva e legalista é grande quando se descobre que o Deus verdadeiro é um Pai que ama, perdoa, vai pessoalmente ao encontro das pessoas afastadas e promove a igualdade. Jesus contesta radicalmente a religião que se propõe a determinar a maneira de Deus agir. Para ele, isso é inadmissível, é um verdadeiro atentado contra Deus.
Certamente, a denúncia de Jesus e do evangelista continua válida também para os dias atuais. Pois, como sabemos, ainda hoje, muitas pessoas religiosas ainda têm dificuldade de aceitar um Deus misericordioso que age com liberdade e doa seu amor a todos, sem distinção. Na verdade, esse Deus continua sendo negado por essas pessoas. É inadmissível um Deus que não premia os bons e castiga os malvados. Para essas pessoas, a salvação é um prêmio, e não um dom; Deus é um soberano, e não um Pai; o outro é um concorrente, e não um irmão; a Igreja é um tribunal, e não uma família. A maneira de agir do “dono da casa” desmente completamente essa concepção errada de Deus.
Assim, chegamos à conclusão e síntese da parábola: “Os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos” (v. 16). Como tínhamos afirmado na introdução, a parábola em si é a explicação para essa máxima proverbial. Não se trata de uma exclusão aos que chegaram primeiro no grupo de discípulos ou na comunidade, mas uma demonstração de que, o fato de chegarem primeiro não lhes dá privilégios nem supremacia sobre os que vieram e virão depois. Essa expressão é apenas um modo de enfatizar que aqueles que forem chamados por último terão acesso ao mesmo amor, à mesma bondade de Deus que os primeiros. O Reino, apresentado como vinha, é também casa, família, é fraternidade e igualdade.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN