O Evangelho deste XXIV Domingo do Tempo Comum, composto de três parábolas, continua situando-nos no longo caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém, oportunidade que Ele aproveita para reforçar a sua catequese, deixando claras quais as características do seu Deus. Após apresentar as exigências necessárias para quem quer entrar no seu discipulado, como refletimos no domingo passado (cf. Lc 14,25-33), hoje Ele nos convida a conhecer o rosto do seu Deus, o qual, mais que uma divindade, é, sobretudo, um Pai.
Além de constituir-se como um dos principais conteúdos de sua catequese para os discípulos e discípulas que o seguem, a mensagem do ensinamento de Jesus nas três parábolas oferecidas pela liturgia de hoje, é também uma bem elaborada resposta à concepção equivocada de Deus da parte dos grupos religiosos predominantes na sua época, os fariseus e os mestres da lei.
Chamadas de ‘parábolas da misericórdia’, estas contêm o núcleo básico e essencial do ensinamento de Jesus: o amor e a misericórdia do Pai. Por isso, não exageram os biblistas quando dizem que esse trecho é como se fosse “o Evangelho do Evangelho”. É claro que a ênfase maior vai para a terceira parábola (vv. 11-32), aquela do “Pai misericordioso”, equivocadamente chamada do “Filho Pródigo”. Essa é, sem dúvida, a mais lida, citada e estudada de todas as parábolas do Novo Testamento. As duas que a precedem tem a função didática de prepará-la: a da ovelha perdida e reencontrada (vv. 3-7) e a da moeda perdida e reencontrada (vv. 8-10).
Para uma boa compreensão das três parábolas, é importante perceber a introdução apresentada nos dois primeiros versículos, pois é daí que conhecemos o contexto e os destinatários das mesmas. O contexto é o de mais um encontro de Jesus com os publicanos e pecadores, cena comum no Evangelho de Lucas (cf. Lc 5,30; 7,34). Esses, publicanos e pecadores, “aproximavam-se de Jesus para escutá-lo” (v. 1), certamente porque encontravam acolhida e compreensão. Como classes rejeitadas social e religiosamente, admiravam-se porque tinham encontrado alguém que os acolhia sem discriminações. É claro que isso comprometia a reputação de Jesus, principalmente perante os líderes religiosos, considerados justos, como os fariseus e os mestres da lei, os quais o "criticavam". Na verdade, ao invés de criticar, o texto grego traz o verbodiago,gguzw – (diagongyzu) – que significa murmurar, o que que quer dizer protestar, levanter-se contra, e isso é muito mais que uma simples critica. Portanto, os fariseus e os mestres da lei protestavam contra Jesus devido o seu comportamento herético, pois além de acolher os pecadores ainda sentava com eles para comer.
Assim, identificamos, obviamente, que são os fariseus e os mestres da lei os destinatários das chamadas parábolas da misericórdia. Logo, muito mais que persuadir pecadores para a conversão, estas parábolas tem a função de abrir a mente dos que se consideram justos, chamando-os a uma nova concepção sobre Deus. Jesus quer mostrar que o Deus, seu Pai, não age conforme o receituário da religião.
As duas primeiras palavras, como já afirmamos anteriormente, tem a função didática de preparar a terceira, mas nem por isso são privadas de valor. Ambas construídas a partir do trinômio “perda-reencontro-festa”, enfatizam a misericórdia de Deus que não aceita que nenhum dos seus filhos se perca e, por isso, busca-os constantemente. Na primeira, da ovelha perdida, nos deparamos com categorias bastante comuns da Escritura hebraica, como pastor, ovelha rebanho (cf. Ez 18,23; Jer 24,7). O amor de Deus pelos seus, apresentam uma dimensão importante da conversão. Um dado que passa quase despercebido, mas muito relevante, é apresentado no versículo quarto: o pastor verdadeiro arrisca a vida das noventa e nove, por amor àquela que se perdeu; ele não espera protegê-las no curral para depois sair em busca daquela perdida; deixa-as no deserto, expostas ao perigo de feras e assaltantes e não descansa enquanto não resgata a única que se perdeu. Essa é uma das características do Deus-Pai que Jesus revela, para o qual as pessoas piedosas da sua época se fecharam.
Na segunda, a grande inovação é o fato de Deus ser apresentado com uma figura feminina. Construídas-as em perfeita simetria, ambas justificam o comportamento de Jesus ao acolher pecadores e publicanos e até sentar-se com eles à mesa. Fazer refeição juntos é fazer comunhão, é dar e receber. Essa era uma ferramenta importante para conhecer em profundidade e deixar-se conhecer. E, ao deixar-se conhecer Jesus conquistava as pessoas, sobretudo aquelas que sentiam-se excluídas e rejeitadas social e religiosamente. Foi para estas que Ele veio ao mundo. Por isso, Ele enfatiza o aspecto festivo que marca o reencontro com o que parecia perdido.
Na segunda, a grande inovação é o fato de Deus ser apresentado com uma figura feminina. Construídas-as em perfeita simetria, ambas justificam o comportamento de Jesus ao acolher pecadores e publicanos e até sentar-se com eles à mesa. Fazer refeição juntos é fazer comunhão, é dar e receber. Essa era uma ferramenta importante para conhecer em profundidade e deixar-se conhecer. E, ao deixar-se conhecer Jesus conquistava as pessoas, sobretudo aquelas que sentiam-se excluídas e rejeitadas social e religiosamente. Foi para estas que Ele veio ao mundo. Por isso, Ele enfatiza o aspecto festivo que marca o reencontro com o que parecia perdido.
A terceira parábola (vv. 11-32), chamada equivocadamente de “Parábola do filho pródigo”, é a obra prima de Lucas. Na verdade, é muito mais justo o título de “Parábola do Pai bondoso ou misericordioso”, como tem sido chamada nos últimos anos. De fato, é o “Pai” que está no centro do ensinamento a partir da relação entre o pai e os dois filhos. Como se trata de um ensinamento dirigido aos considerados justos, fariseus e mestres da lei, a parábola apresenta com ênfase a misericórdia do Pai, e não um modelo de convertido, como erroneamente já se apresentou o filho mais novo como modelo de conversão.
“Um pai tinha dois filhos” (v. 11), mas nenhum dos dois tinha experimentado o amor desse pai. Ambos o viam mais como um patrão, a ponto de um deles não mais o suportar e pedir a parte da herança devida, no caso, um terço dos bens, já que era o filho mais novo. Para a cultura judaica, quando um filho pedia a herança com o pai ainda vivo, era como se o estivesse matando e ao mesmo tempo morrendo: a relação entre os dois estava completamente acabada. A sua partida para um lugar distante (v. 13) confirma isso ainda mais. Aos poucos, à medida que esbanja os bens, vem a decadência, e torna-se praticamente escravo de um estrangeiro a ponto de submeter-se ao pior dos trabalhos para um judeu: cuidar de porcos (v. 15). Essa situação de humilhação leva-lhe a uma reflexão, mas não a uma conversão, ao contrário do que dizem as interpretações tradicionais. De fato, sua fala não mostra sinal de conversão: “Quantos empregados do meu Pai têm pão com fartura e eu aqui morrendo de fome” (v. 17). Como se vê, as motivações foram meramente materiais, ou seja, ele sentiu falta da mesa farta, e não do amor do pai. Mas, a certeza da fartura na casa do pai foi o suficiente para tomar a firme decisão de voltar e pedir para ser tratado, pelo menos, como empregado.
Certamente, a conversão aconteceu, não tenhamos dúvida. Mas, aconteceu com a acolhida que o Pai lhe proporcionou, com o sentimento de compaixão, próprio de Deus, e o abraço seguido de beijos (v. 20) e, por fim, a restituição dos bens e da dignidade de filho, através da imagem da túnica, anel e sandália (v. 22). Destes sinais, o mais significativo é o anel, pois mais que adorno, era o sinal da confiança resgatada, pois o mesmo dava autoridade para gerenciar negócios em nome do pai. Com tanto amor demonstrado, não tem como pensar que não houve conversão. Mas é interessante perceber a conversão como resposta ao acolhimento, pois na primeira motivação do filho, o interesse estava apenas na mesa farta.
O filho mais velho, guardião da moral e dos bons costumes, obediente ao extremo, entra em cena exatamente no momento em que a festa acontece (vv. 25-30). Sente-se escandalizado e até traído pelo pai, por acolher um filho errante com festa, enquanto ele, sempre fiel, jamais teve direito a fazer qualquer comemoração com seus amigos. Esse é tão fechado em si, tem uma ideia tão distorcida do pai, a ponto de nem considerar o outro como irmão; simplesmente diz ao pai: “esse teu filho” (v. 30). É esse o comportamento de Israel fechado em si, que insiste em manter uma caricatura de Deus, desconhecendo a beleza do Deus que Jesus apresenta, um Pai cheio de amor e misericórdia.
Muitas leituras podem ser feitas a partir dessa parábola. Considerando os destinatários imediatos e a perspectiva universalista de toda a obra de Lucas (Evangelho e Atos dos Apóstolos), a leitura mais sensata, a qual tem prevalecido nos estudos mais recentes, é a representação da relação tensa entre judeus e pagãos no cristianismo das origens. O filho mais velho representa os judeus fechados em si, e o mais novo, os pagãos, os quais são acolhidos no novo povo de Deus, a Igreja, sem nenhuma distinção.
Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues