A liturgia deste V Domingo da Quaresma continua nos convidando a refletir a partir do Evangelho segundo João. O texto proposto hoje é o relato do sétimo e último sinal cumprido por Jesus nesse Evangelho, a reanimação de Lázaro, seu amigo, em Jo 11,1-45. É um episódio exclusivo do Quarto Evangelho, e muito significativo, pois conclui o ciclo dos sinais ou milagres feitos por Jesus. Como se trata de um texto de grande extensão, não analisamos todos os versículos, e procuramos destacar apenas os seus aspectos principais.
Os sete sinais narrados por João foram criteriosamente escolhidos, como ele mesmo afirma no final do Evangelho, para despertar a fé em Jesus e transmitir a vida em plenitude que dessa emana (cf. Jo 20,30-31), sendo esse da reanimação de Lázaro o sinal por excelência, ou seja, o maior de todos.
Não se trata propriamente de uma ressurreição, mas de uma “reanimação”, considerando que ressurreição é a passagem da morte para uma vida definitiva e plena, graças à ressurreição de Cristo. O que João apresenta é Jesus realizando a reanimação de um corpo que já se encontrava em estado de decomposição, mas que continuou corruptível. Jesus apenas prolongou os dias de Lázaro com esse sinal extraordinário.
Esse não é o único milagre do gênero narrado na Bíblia. Ainda no Antigo Testamento, Elias e Eliseu realizaram prodígios semelhantes: Elias restituíra a vida ao filho da viúva de Sarepta (cf. 1Rs 17,17-24), e Eliseu fizera o mesmo com o filho da sunamita (cf. 2Rs 4,8-37). Nos demais evangelhos temos outros dois episódios semelhantes: Jesus reanima o filho da viúva de Naim (cf. Lc 7,11-17) e a filha de Jairo (cf. Mc 5,22-43).
Como sempre, não dispensamos a contextualização, mesmo que breve, para que o texto possa ser bem compreendido. Esse relato da reanimação de Lázaro está inserido entre duas ameaças de morte a Jesus da parte dos dirigentes ou chefes da religião oficial. Daí, já surge um dado interessante: à morte, Jesus responde com o dom da vida.
No capítulo anterior, por ocasião da festa da dedicação do templo, os judeus quiseram apedrejar Jesus, acusando-o de blasfemador (cf. Jo 10,31-33), mas Ele conseguiu escapar e fugiu (cf. 10,39-40). Após restituir a vida de Lázaro, os chefes judeus, incluindo o Sumo Sacerdote, fizeram o plano definitivo para o aniquilamento de Jesus, pois Ele tinha ido longe demais dessa vez (cf. Jo 10,46-54). Portanto, em meio a duas situações de morte, Jesus manifesta a vida e a apresenta como resposta a toda e qualquer situação em que essa é ameaçada.
Voltemos agora o nosso olhar para o texto partindo do primeiro versículo, muito significativo, por sinal: “Havia um doente, Lázaro, de Betânia, povoado de Maria e de sua irmã Marta” (v. 1). Em Betânia, cujo nome significa “casa da aflição”, havia uma comunidade cristã ideal, onde a fraternidade, de fato, reinava. Essa fraternidade é evidenciada pela apresentação que o evangelista faz de seus membros: Lázaro, Maria e Marta são apresentados apenas como irmãos, não há hierarquia entre eles, não há pai nem mãe, mas apenas pessoas iguais; essa é a comunidade ideal para o cultivo do amor e das relações fraternas e sinceras.
Embora a comunidade de Betânia fosse ideal, ao mesmo tempo era vulnerável por dois motivos; o primeiro, por ser um povoado, o segundo porque estava próxima a Jerusalém (v. 18). O povoado na Bíblia, em grego kw,mh – kôme, é sinônimo de resistência e conservadorismo, pois é o lugar de preservação da tradição, onde a novidade não é bem recebida.
O segundo motivo para a vulnerabilidade da comunidade de Betânia só é apresentado no versículo 18, mas já adiantamos aqui: “Betânia ficava a uns três quilômetros de Jerusalém”. Infelizmente, a tradução litúrgica omite o advérbio “perto” presente no texto original: evggu.j – enghys, em grego; a tradução mais justa seria “Betânia estava perto de Jerusalém cerca de três quilômetros”. Para a proximidade geográfica, a indicação dos três quilômetros é suficiente. O advérbio faz falta porque a ênfase que o evangelista está dando é à proximidade ideológica. Estando próxima a Jerusalém, essa comunidade era facilmente influenciada pela ideologia dominante, ou seja, pelo judaísmo oficial.
A influência de Jerusalém, ou seja, do judaísmo oficial sobre a comunidade de Betânia se evidencia ao longo de todo o texto pela reação dos personagens diante do fenômeno da morte (vv. 19.21.24.31.33.37), e diante de Jesus. Diz o texto que “Muitos judeus tinham vindo à casa de Marta e Maria para as consolar por causa do irmão” (v. 19), quer dizer que a morte era vista como causa de desespero e medo, e Jesus não era conivente com essa mentalidade. Por isso, Ele prefere não entrar no povoado: Marta vai ao encontro dele e, depois, também Maria, pois Jesus a tinha chamado (vv. 20.28.30).
No povoado, concebia-se a morte com o respaldo da religião oficial: as irmãs choravam desesperadamente, sendo consoladas pelos judeus que tinham ido de Jerusalém. Por isso, Jesus fica fora do povoado (v. 30), porque somente saindo das antigas estruturas e mentalidade é possível vivenciar o triunfo da vida: de fora do povoado, Jesus chama as irmãs a saírem; Ele não entra e as conduz pela mão, mas dá a liberdade de escolha; ao seu convite, as irmãs de Betânia e os cristãos de todos os tempos podem responder positiva ou negativamente.
De Lázaro, o doente-morto-vivo, pouco se diz, pois, o objetivo do evangelista não é apresentar uma biografia sua, mas convidar a comunidade a escapar das estruturas de morte e despertá-la para Aquele que é “a Ressurreição e a Vida” (vv. 25-26), Jesus. Como o significado do nome Lázaro é “Deus ajuda”, podemos compreender o episódio narrado em torno da sua pessoa como um convite de Jesus à comunidade a buscar ajuda e consolo fora da Lei e das antigas instituições, por isso, Ele diz: “essa doença é para que o Filho de Deus seja glorificado por ela” (v. 4). Em Lázaro, Deus está ajudando a comunidade a sair da antiga mentalidade.
Como o texto é também um pré-anúncio da paixão, morte e ressurreição de Jesus, o evangelista ressalta alguns aspectos importantes da sua vida, sobretudo, no que diz respeito à sua humanidade: um homem de afetos e emoções! Cultivava amizade (v. 5), amava e se deixava ser amado, a ponto de ter o amor como a característica maior das relações recíprocas com seus discípulos: “Senhor, aquele que amas, está doente” (v. 3a); aqui, o evangelista apresenta Lázaro como o discípulo ideal, cuja relação com o Senhor é simplesmente o amor. Ser discípulo é sentir-se amado por Jesus e amar ao próximo com a mesma intensidade do amor recebido de Jesus.
O afeto e a seriedade de Jesus nas relações com seus discípulos são muito bem apresentados por João nesse relato. Não poderia passar despercebido em nossa reflexão o registro marcante do versículo 35: “E Jesus chorou”. A interpretação para essa expressão tem sido muito questionada e variada ao longo do tempo. É inegável que foi uma demonstração de afeto e prova do seu amor pelo discípulo. Aqui, se faz necessária mais uma observação semântica.
As irmãs choravam (vv. 31.33) e certamente outros amigos que foram ao encontro delas em solidariedade. Há, no entanto, uma distinção entre as duas maneiras de chorar, o que a tradução litúrgica omite. Existem dois verbos na língua grega, na qual foi escrito o nosso texto, klaiw (klaío) edakriw (dakrío); ambos significam chorar, mas com conotações diferentes. O primeiro, klaiw (klaío), significa choro enquanto lamento e desespero, aplicado pelo evangelista nos versículos 31 e 33 para afirmar o choro de Maria, a irmã de Lázaro. Para afirmar o “choro” de Jesus, o evangelista usa o segundo verbo dakriw (dakrío), o qual significa simplesmente “derramar lágrimas”, “lacrimejar”, o que significa uma reação natural, mas não desesperadora. Portanto, enquanto os demais, principalmente as irmãs, choravam desesperados, derretendo-se em prantos e lamentações, Jesus apenas derramou lágrimas porque, para Ele, a morte nunca é o fim.
As lágrimas de Jesus causam admiração entre os judeus: “Então os judeus disseram: Vede como ele o amava” (v. 36). Ora, eles não conheciam amor nem gratuidade nas relações; viviam aprisionados pelo rigor da Lei; concebiam a relação com Deus a partir do modelo patrão-servo, dominador-dominado. Por isso, a Boa-Nova de Jesus não tinha boa aceitação no povoado. Por onde Jesus passa, o amor o acompanha e só quem ama e se sente amado pode acolhê-lo.
Jesus foi ao encontro das irmãs porque não abandona sua comunidade aflita e amava incondicionalmente Lázaro, a ponto de derramar lágrimas por ele (v. 35), mesmo não compactuando com a mentalidade delas. Porém, sua ida é pedagógica. Ao invés de alimentar aquela mentalidade, ainda influenciada pela religião oficial, Ele a combate: chega somente no quarto dia após a morte (v. 39) e não entra no povoado. A chegada no quarto dia foi proposital: Ele tinha consciência do que deveria fazer e já tinha expressado isso aos discípulos mais próximos: “o nosso amigo Lázaro dorme” (v. 11). Merece atenção aqui o possessivo plural: tudo o que Ele tinha e tem é compartilhado com os seus, inclusive as amizades e todas as relações. Na sua comunidade não há espaço para o individualismo: bens e afetos existem para a partilha.
A chegado após quatro dias tinha como objetivo desmascarar uma falsa crença judaica de que até três dias após a morte, ainda era possível que o defunto voltasse a viver, pois acreditava-se que o espírito do morto ainda sobrevoava ao redor do cadáver. A partir do quarto dia, começava a decomposição e, portanto, o espírito ia embora. Realizando o milagre até o terceiro dia, a “glória do Filho de Deus” não seria manifestada, pois os presentes reconheceriam como algo natural, conforme a crença.
A ida de Jesus teve, portanto, um objetivo muito claro: libertar a comunidade da morte física, por um momento, e principalmente, da doença e morte ideológica, da qual a comunidade estava ameaçada. Chamou Lázaro para fora do túmulo (v. 43), ordenando que fosse retirada a pedra (v. 39). A pedra representa aqui, tudo o que separa a vida da morte: o medo, a violência, a opressão e tudo o que a Lei causava de mal no seio da comunidade. Para Jesus, a antiga Lei era sinal de morte.
A ordem “Lázaro, vem para fora” (v. 43) é o convite final que Jesus faz para a liberdade. É necessário “desatar” (v. 44) o ser humano de tudo o que o impede de caminhar livremente em busca da vida plena e da dignidade. É necessário sair dos povoados e dos túmulos para caminhar com Jesus em busca de um mundo novo onde, de fato, reine o amor e a vida triunfe!
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues