O evangelho deste quarto domingo do tempo comum, Marcos 1,21-28, está em perfeita continuidade com o do domingo anterior (cf. Mc 1,14-20). Após ter iniciado a composição da comunidade de discípulos, chamando os quatro primeiros seguidores, e anunciado a iminência do Reino de Deus, eis que Jesus inaugura definitivamente o seu ministério na Galiléia. Embora o evangelista já tivesse feito referência a esse ministério de Jesus na Galiléia, essa é a primeira vez que ele faz uma descrição da sua atuação.
Logo de início, é importante recordar que, sendo essa a primeira narrativa descritiva da atuação de Jesus, ela se torna paradigmática. Como elementos mais importantes do texto a serem observados, destacamos: as dimensões de tempo e espaço (sinagoga/sábado), ensinamento e cura (palavra/ação), admiração e confronto. Esses elementos são muito representativos para a imagem de Jesus que Marcos pretende apresentar com o seu evangelho.
Eis o texto: “Na cidade de Cafarnaum, num dia de sábado, Jesus entrou na sinagoga e começou a ensinar” (v. 21). É muito significativo esse primeiro versículo. A cidade de Cafarnaum, cujo nome significa “aldeia de Naum”, se torna o centro das atividades iniciais de Jesus na Galiléia. Era uma cidade estratégica devido a sua localização às margens do mar (lago) da Galiléia, sua economia e população bastante diversificada. Era a cidade ideal para a “pesca de homens”, atividade atribuída aos seus discípulos. Por isso, Jesus monta nela o núcleo central do seu discipulado e das suas atividades. É importante recordar que a ordem para os discípulos se tornarem “pescadores de homens” possui um significado muito forte: longe de ser um convite ao proselitismo, era um convite à promoção do ser humano em sua dignidade plena; significa a missão do discípulo de promover a libertação do ser humano de toda e qualquer situação de perigo, aprisionamento e morte.
A ação de Jesus que o evangelho de hoje descreve mostra a sua principal urgência: libertar o ser humano da religião alienante e corrupta. Das tantas situações de perigo nas quais a humanidade estava imersa, a pior de todas era a alienação religiosa. Por isso, o primeiro espaço visitado por Jesus com sua mensagem e ação libertadoras foi a sinagoga.
O evangelista se aproveita da vida litúrgica de Israel, sinagoga e sábado, para apresentar a missão libertadora de Jesus. O sábado era o dia sagrado por excelência para o povo judeu; dia do repouso e do culto, da escuta atenta da Lei e dos Profetas. A sinagoga era o lugar sagrado do culto, da reunião da comunidade, da catequese; o espaço privilegiado da pregação no judaísmo e, consequentemente, do ensino da preservação das tradições e do cumprimento dos preceitos da Lei.
Jesus, ao contrário dos mestres da lei, não frequentava a sinagoga para ensinar a preservar as tradições, nem para repetir fórmulas e nem para cumprir os preceitos, mas a transgredi-los, uma vez que esses faziam parte do aparato de dominação e opressão ao qual o povo estava submetido. A diferença entre a pregação inovadora de Jesus e a tradicional dos mestres da Lei e rabinos da época logo foi percebida pelo povo: “Todos ficavam admirados com o seu ensinamento, pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da Lei” (v. 22). A autoridade com a qual Jesus ensinava consistia na sua coerência de vida e fidelidade ao Pai. As pessoas, habituadas a ouvir repetições de fórmulas, logo se admiram com a novidade apresentada por Jesus. Ora, o Reino de Deus, objeto da pregação de Jesus, tinha sido bloqueado pela religião. Os mestres da Lei eram funcionários do sagrado, ao invés de autoridade ensinavam com autoritarismos e força repressiva. Jesus ensina com liberdade e para a liberdade.
À medida em que o anúncio de libertação ecoa, eis que as forças do mal se evidenciam, pois não aceitam a prática libertadora de Jesus, como constata o evangelista: “Estava então na sinagoga um homem possuído por um espírito mau. Ele gritou: ‘Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus” (vv. 23-24). A presença desse homem no reduto sagrado da sinagoga comprova a completa falência daquela religião. Até então, o ensinamento ali oferecido pelos mestres da Lei não tinha ido de encontro ao mal instalado.
A presença de um homem possuído por um espírito mau no espaço sagrado atesta que aquela religião tinha perdido sua capacidade de combater o mal. O que ameaça o mal é a presença do bem, e Jesus é, por excelência, o portador do bem, o homem possuído pelo Espírito Santo. Até então, o mal instalado não tinha se sentido ameaçado, porque não havia quem irradiasse o bem naquele ambiente. O homem possuído pelo espírito mau, com quem a religião convivia tão bem, se sente ameaçado pelo ensinamento libertador de Jesus com sua autoridade.
Quanto mais o Reino de Deus se aproxima, mais o domínio do mal se sente ameaçado. Por isso, o homem pergunta o que Jesus veio fazer. O poder da morte, a anti-vida está com os dias contados. O mal sente-se destruído com a implantação do Reino de Deus. Por isso, será articulado o complô da morte entre a religião e o império romano para fazer calar a voz de Jesus.
Jesus não suporta o mal ao seu redor, por isso “o intimou: Cala-te e sai dele!” (v. 25). A essa ordem, segue-se o seu efeito: “Então o espírito mau sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu” (v. 26). Quem está dominado por forças hostis como a violência, a corrupção, a mentira e o ódio, não consegue livrar-se com facilidade. Mas, a a palavra de Jesus tem uma eficácia inconfundível e, mesmo sofrendo violência, consegue vencer. Aqui está um dos principais elementos do relato: a coerência entre a palavra e a ação de Jesus. Ensinamento e cura (expulsão do espírito mau) na mesma cena significa que em Jesus não há discordância entre o falar e o agir; Ele é totalmente coerente. Essa é a sua práxis!
Se o ensinamento de Jesus já causava admiração, essa aumenta ainda mais quando os seus ouvintes percebem a novidade também na prática: “E todos ficaram muito espantados e perguntavam uns aos outros: ‘O que é isto? Um ensinamento novo dado com autoridade: Ele manda até nos espíritos maus e eles obedecem!” (v. 27). Chama a atenção da assembléia o fato de Jesus não permitir o mal diante de si. Para os mestres da Lei, pregadores e intérpretes oficiais, não importavam as situações concretas vivenciadas pelos participantes do culto; eles se preocupavam apenas em transmitir a doutrina. Jesus, pelo contrário, colocava a vida e o bem-estar do ser humano em primeiro plano, por isso incomodava as forças do mal ali instaladas. Essa novidade evidenciava ainda mais a sua autoridade.
A novidade da práxis de Jesus gera admiração, fama e também aceitação da parte do povo, como recorda o evangelista: “E a fama de Jesus logo se espalhou por toda a parte, em toda a região da Galiléia” (v. 28). As pessoas estavam saturadas de uma religião indiferente à vida e até conivente com as forças opressoras. Jesus inova no falar e no agir, tirando a doutrina do centro e colocando a vida do ser humano. Obviamente, como vai ser mostrado ao longo do Evangelho, muitos conflitos virão como fruto de suas opções, levando-o à cruz, inclusive.
Portanto, tendo no domingo passado designado os primeiros discípulos como “pescadores de seres humanos”, hoje Jesus nos ensina a natureza dessa pesca: ser agente de libertação para a humanidade, livrando o ser humano das situações de opressão e morte. Como de todas as alienações a pior é aquela religiosa, foi no espaço dito sagrado que Ele iniciou sua missão, pois era ali onde mais se permitia que os seres humanos fossem “afogados”, ou seja, privados de sua liberdade e vida plena. Hoje, seu discipulado é também interpelado a reconhecer quais são as estruturas de domínio do mal. Vale a pena recordar que, muitas vezes, o mal ainda continua disfarçado de doutrinas, ritos e preceitos.
Mossoró-RN, 27/01/2018, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues