O texto evangélico proposto para a liturgia da solenidade da Santíssima Trindade, neste ano C, é Jo 16,12-15. Como de costume, a nossa reflexão se concentra exclusivamente no texto bíblico, sem entrar nas questões relativas ao dogma trinitário propriamente. Hoje é a última vez em que lemos um trecho do Evangelho segundo João na liturgia dominical deste ano litúrgico, após uma sequência de leituras durante todo o tempo pascal, com exceção da solenidade da Ascensão, quando lemos um texto de Lucas (cf. Lc 24,46-53). Portanto, já estamos familiarizados com o Quarto Evangelho, embora os enigmas que lhe são próprios continuem indecifráveis.
O contexto do Evangelho de hoje ainda é o da última ceia, ambientada no cenáculo em Jerusalém, e vivenciada por Jesus com seus discípulos, às vésperas da páscoa. Como já afirmamos em outras ocasiões, a ceia no Quarto Evangelho não é apenas o consumo de alimentos e nem a vivência de um rito, tampouco uma mera confraternização. Para a comunidade joanina a ceia é a auto revelação de Jesus, é o momento mais forte da sua catequese. Foi na ceia que Jesus apresentou o seu “testamento”, como é chamado o seu longo discurso de despedida. A centralidade da ceia em João é evidenciada pelo espaço que ocupa: são cinco capítulos (13 – 17), totalizando cento e cinquenta e cinco versículos, o que corresponde a um quarto de todo o Evangelho. Esse momento foi iniciado com o lava-pés (cf. 13,1-15), e continuado pelo discurso de Jesus, com algumas interrupções dos discípulos (cf. 13,36-38; 14,5.8.22).
Jesus sabia do que estava para acontecer: em pouco tempo, seria condenado à morte; os discípulos também imaginavam o que estava para acontecer, embora não tivessem ainda tanta clareza. Havia um clima de tensão e medo entre os discípulos, o que era inevitável para as circunstâncias, por isso Jesus procurou acalmá-los em diversos momentos (cf. 14,1.27; 16,6.22). Por cinco vezes, durante o discurso, Jesus promete enviar o Espírito Santo quando retornar para o mundo do Pai (cf. 14,16-17.26; 15,26; 16,7-8.13), de modo que os discípulos não permanecerão sozinhos, pois através do Espírito, a presença de Jesus se eternizará no meio deles. O Evangelho de hoje contém a quinta e última promessa.
Durante o seu ministério, Jesus apresentou todo o seu programa aos discípulos, o seu “Evangelho”, compreendendo palavras e sinais; não escondeu nada, conforme Ele disse nesse mesmo discurso: “já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu Senhor, mas vos chamo de amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer” (cf. Jo 15,15). Ser discípulo(a) de Jesus é entrar no seu círculo de profunda intimidade, é ser contado entre os seus amigos, de quem Ele nada esconde. A princípio, o primeiro versículo de hoje parece contradizer a afirmação acima: “Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora” (v. 12). Jesus já disse tudo; não há novas coisas para dizer. Aqui, Ele se refere à capacidade de compreensão dos discípulos.
Muita coisa da vida e da mensagem de Jesus ainda não tinha sido assimilada pelos discípulos, porque a chave de interpretação da sua vida é a ressurreição. Na verdade, aqui o evangelista nem usa o verbo compreender, empregado equivocadamente pela tradução litúrgica, mas o verbo “suportar” (em grego: βαστάζω – bastázo); a tradução mais justa, portanto seria: “não sois capazes de suportar agora”. Antes da ressurreição e sem o dom maior do Ressuscitado, o Espírito Santo, os discípulos não tem força para suportar a sua mensagem de libertação e vida em plenitude, sobretudo porque essa compreende a passagem pela cruz, como consequência de um amor incondicional.
Para compreender e suportar o peso da mensagem de Jesus, sobretudo a cruz, os discípulos necessitam de uma força especial, de uma energia que os tire do medo e do comodismo, e Jesus garante que eles receberão essa força: “Quando porém, vier o Espirito da Verdade, ele vos conduzirá à plena verdade. Pois ele não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido; e até as coisas futuras vos anunciará” (v. 13). A Verdade é o próprio Jesus, como Ele mesmo se auto intitulara antes: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (14,6). A “Verdade plena”, portanto, é o Cristo glorificado no mundo do Pai, realidade que só pode ser alcançada por quem se deixa conduzir pelo Espírito; é o “conjunto da obra”: da preexistência do Verbo (cf. Jo 1,1) à encarnação (cf. Jo 1,14), passando pela cruz, até o retorno para o mundo do Pai.
A função do Espírito é manter a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, que é a Verdade em pessoa. As “coisas futuras” que serão anunciadas não são novas revelações ou visões; significa a capacidade de ler os eventos futuros à luz da mensagem de Jesus. A comunidade cristã – Igreja – sempre encontrará situações novas e surpreendentes ao longo da história. Independente da época, deverá interpretar tais circunstâncias à luz de tudo o que Jesus ensinou. Só é possível fazer isso deixando-se conduzir pelo Espírito da Verdade.
Guiada pelo Espírito Santo, a comunidade mantém a atualidade da mensagem de Jesus em qualquer que seja a situação e a época histórica. Continuando, Ele afirma: “Ele me glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo anunciará” (v. 14). Ora, o Espírito irá iluminar os discípulos para compreenderem e viverem o que Jesus já disse. Assim como Jesus glorificou o Pai fazendo a sua vontade, também o Espírito glorifica Jesus conduzindo a comunidade em conformidade com o Evangelho. Ao contrário dos sinóticos, que prevêem uma vinda gloriosa de Jesus no último dia, João não segue essa linha. Para o autor do Quarto Evangelho, a glória de Jesus é que Ele mesmo esteja permanentemente presente na comunidade através do Espírito.
A promessa do Espírito é concluída com uma afirmação muito profunda que enfatiza a sua comunhão de Jesus com o Pai: “Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso, disse que o que ele receberá e vos anunciará, é meu” (v. 15). O Pai é a fonte originária de tudo. O que Jesus tem a oferecer ao mundo, o amor ilimitado, pertence ao Pai; mas como Ele e o Pai são Um (cf. Jo 10,30), tudo o que é do Pai é também seu. Logo, o que o Espírito recebe de Jesus, recebe também do Pai. Aqui, nesse último versículo temos, de fato, um eco trinitário bastante evidente, pois revela a comunhão dos três: o Espírito comunica à comunidade tudo o que recebe de Jesus, e tudo o que Jesus concede ao Espírito recebeu do Pai.
A presença perene de Jesus na comunidade, através do Espírito, é também presença do Pai. É essa relação que torna sempre novo e atual tudo o que Jesus viveu e ensinou. Deixar-se conduzir pelo Espírito Santo é entrar também nessa comunhão profunda com o Pai e o Filho.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN