A liturgia do vigésimo oitavo domingo do tempo comum propõe mais um texto exclusivo do Evangelho segundo Lucas, no contexto do caminho de Jesus em direção à cidade de Jerusalém, cujo desfecho final serão os eventos da sua paixão, morte e ressurreição. O texto de hoje – Lucas 17,11-19 – relata um episódio muito relevante nesse caminho: a cura de dez leprosos. Desta vez, o contexto é fornecido pelo próprio texto, em seu primeiro versículo, o que torna desnecessária uma contextualização introdutória, uma vez que essa pode ser feita na explicação do próprio texto. Por isso, podemos já olhar diretamente para ele: “Aconteceu que, caminhando para Jerusalém, Jesus passava entre a Samaria e a Galileia” (v. 11). Ora, como o caminho constitui a seção narrativa mais longa do Evangelho, Lucas faz questão de recordar constantemente esse detalhe para situar os leitores e evitar possíveis dispersões (cf. Lc 9,51.57; 10,38; 13,22; 17,11; 18,35; 19,1). Isso revela as suas qualidades de um narrador exemplar que sabe prender a atenção dos leitores.
Como temos repetido constantemente, esse caminho percorrido por Jesus não é apenas um percurso físico-geográfico, mas é, sobretudo, um itinerário catequético e teológico de grande relevância para Lucas e suas comunidades, o que o torna importante também para as comunidades cristãs de todos os tempos. Com isso, o evangelista antecipa seu ideal de comunidade missionária, o que pode ser compreendido hoje como a “Igreja em saída”. A princípio, parece haver uma incoerência na informação do primeiro versículo, se considerássemos esse caminho apenas no ponto de vista da geografia, considerando que Jesus partiu da Galileia em direção a Jerusalém, e nesse percurso não há uma região intermediária entre a Samaria e a Galileia; é a Samaria a região intermediária entre a Galileia e a Judeia, onde estava Jerusalém. Portanto, deveria percorrer antes a Galileia e depois a Samaria. Porém, como o evangelista não tem intenção de apresentar uma crônica de viagem, não busquemos informações precisas; seu interesse é teológico e, nesse sentido, a informação é muito rica: ao mencionar primeiro a Samaria, região considerada impura e habitada por uma população tida como herética pelo judaísmo da época, o evangelista quer evidenciar a preferência de Jesus pelo que é marginalizado e desprezado.
Como o primeiro versículo tem uma função mais contextualizadora, é nos versículos seguintes que aparecem as informações mais relevantes: “Quando estava para entrar num povoado, dez leprosos vieram ao seu encontro. Pararam à distância, e gritaram: “Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!” (vv. 12-13). O povoado ou aldeia na linguagem dos evangelhos tem, quase sempre, um sentido negativo, é sinônimo de hostilidade ao ensinamento de Jesus, principalmente em Lucas, o mais cosmopolita dos evangelistas. Ora, o povoado (em grego: κώμη = côme) é o lugar onde as tradições estão mais enraizadas, é onde o conservadorismo reina e, por isso, representa a resistências às novas ideias. A rejeição a Jesus na sinagoga de Nazaré, descrita por Lucas logo no início da sua vida pública (cf. Lc 4,14-30), explica bem a mentalidade reinante no povoado: o apego à tradição impede de acolher a mensagem libertadora de Jesus. Se estivéssemos procurando a historicidade do fato, encontraríamos aqui uma nova dificuldade, pois o texto indica que Jesus está entrando, os leprosos o avistam e vão ao seu encontro, como se eles estivessem dentro do povoado. Historicamente isso seria impossível, pois as leis de pureza contidas no Levítico determinavam que os leprosos ficassem distante da cidade ou do povoado. Inclusive, o Levítico dedica dois capítulos inteiros para tratar da questão do leproso (cf. Lv 13 – 14); aqui, recordamos a passagem central: “O leproso andará esfarrapado e despenteado, com a barba coberta e gritando: ‘Impuro, impuro!’ Enquanto durar a enfermidade, ficará impuro. Viverá à parte: sua habitação será fora do acampamento” (Lv 13,45-46). Portanto, historicamente não seria possível que os leprosos estivessem dentro do povoado, pois a Lei não permitia.
A lepra significava o grau máximo de desgraça, e o leproso, obviamente, o condenado por excelência; inclusive, na língua hebraica, a palavra corresponde significa também “golpe dado por Deus”, logo, o leproso era considerado alguém que foi “golpeado por Deus”, portanto, um castigado. Era o pior dos males e, por isso, as leis bíblicas não tinham em vista a sua proteção; pelo contrário, visavam exatamente evitar a contaminação dos “puros”, por isso, determinavam a segregação total. O pior de tudo é isso que era visto como consequência do pecado e, portanto, como castigo de Deus. Logo, era o sacerdote quem examinava a pessoa para declará-la impura e também, em caso de cura, quem a declarava pura e, portanto, readmitida ao convívio social. A atitude dos leprosos é de submissão e respeito à Lei, pois “Pararam à distância”. Compreendiam que não podiam aproximar-se de ninguém que estivesse são, como Jesus. Embora reconheçam a submissão, há um inconformismo, sentem que o fardo imposto é pesado demais e, por isso, gritaram pedindo compaixão. Ao invés de gritarem o sinal do aviso, “Impuro, impuro!”, como ordenava a Lei para que uma pessoa “pura” não se aproximasse deles, gritaram em súplica a Jesus. É um grito de dor, de quem carrega um fardo insuportável e, essa dor não era tanto a física, mas a exclusão, a completa marginalização que a religião lhes imponha. E, ao contrário do que pregava a religião, Jesus não os considerava amaldiçoados nem impuros. Por isso, os atende conforme é solicitado: com compaixão!
Na sequência, eis a resposta de Jesus à súplica dos leprosos e as respectivas consequências: “Ao vê-los, Jesus disse: “Ide apresentar-vos aos sacerdotes”. Enquanto caminhavam, aconteceu que ficaram curados” (v. 14). Como sempre, o agir libertador de Jesus não é marcado por interrogatórios nem lição de moral; sua preocupação é a libertação total da pessoa, reintegrar no convívio social, restituindo-lhe a dignidade negada pelo sistema religioso e político. Por isso, ordena: “Ide apresentar-vos aos sacerdotes”. Ora, segundo as normas do Levítico, era o sacerdote quem examinava o leproso e tinha autoridade para dizer se estava apto ou não para o convívio social. Há uma certa ironia da parte de Jesus, pois como a lepra era praticamente incurável, e o leproso era considerado um semimorto, a apresentação daqueles dez levaria o sacerdote a uma reflexão a respeito da verdadeira mediação entre Deus e a humanidade; desmascararia aquela religião cheia de preceitos inúteis: os leprosos ficaram curados sem submeter-se a nenhum rito penitencial; foram curados, ou melhor, libertados, pela força da palavra de Jesus.
Os leprosos acreditaram nas palavras de Jesus e, “Enquanto caminhavam, ficaram curados”; aqui está o núcleo central de todo o texto. Eles ficaram curados enquanto caminhavam, ou seja, quando saíram do povoado. Daí que, como ressaltamos antes, a intenção do autor não é crônico-histórica, mas catequética e teológica. Logo, quem tornava aqueles dez homens deficientes era a mentalidade fechada e legalista do povoado, sustentada pela religião. Aqui, mais uma vez, é importante fazer um esclarecimento semântico: embora a tradução litúrgica empregue o verbo curar, o evangelista emprega um que significa purificar (grego: καθαρίζω = katharízo). Esse esclarecimento ajuda muito na compreensão da atitude de Jesus. Sua primeira preocupação era tirar o rótulo imposto pela religião, a qual classificava as pessoas como puras ou impuras. Jesus quer que todos se reconheçam e sejam reconhecidos como iguais, portanto, sem rótulos, sem classificação.
É interessante que o texto nem diz que Jesus os curou; Jesus apenas mostrou-lhes o caminho, indicando que era necessário desapegar-se das tradições. Era aquela mentalidade mesquinha do povoado que lhes tinha imposto o rótulo de impuros, obrigando-os à segregação. E, como diz o texto – nas entrelinhas – que eles na verdade estavam no povoado, a mensagem central de Lucas nesse trecho é que enquanto nos submetemos aos aprisionamentos e condicionamentos impostos pelos costumes e tradições, viveremos rotulados e sujeitos aos ditames do sistema. Outro pormenor importante é que a purificação ou cura aconteceu enquanto caminhavam. Foi, exatamente, em caminhada que Jesus quis a sua comunidade e quer a sua Igreja em todos os tempos. Era um grupo de dez, um número simbólico que significa totalidade, completude; também esse é um dado importante que o evangelista apresenta: a dimensão comunitária da fé. Os leprosos não suplicaram individualmente, cada um pedindo a sua cura; suplicaram em comunidade: “tem compaixão de nós!” (v. 13); a súplica foi atendida igualmente à medida em que caminharam juntos. É em comunidade que que se deve lutar, porque é em comunidade que se salva e se liberta.
Enquanto caminhavam, “Um deles, ao perceber que estava curado, voltou glorificando a Deus em alta voz; atirou-se aos pés de Jesus, com o rosto por terra, e lhe agradeceu. E este era um samaritano” (vv. 15-16). Não pode passar despercebido o fato de somente um ter voltado glorificando a Deus em alta voz, e ser um samaritano. Embora os samaritanos tenham rejeitado Jesus no início da viagem (cf. Lc 9,52-56), Lucas deixa muito clara a predileção de Jesus por aquele povo tão rejeitado pelos judeus. O exemplo mais claro dessa predileção se verifica com a parábola do samaritano caridoso (cf. Lc 10,29-37), sobrepondo seu comportamento ao do sacerdote e do levita. Além de voltar glorificando a Deus, após sentir-se curado, é muito importante a sua atitude: “atirou-se os pés de Jesus com o rosto por terra e agradeceu-lhe” (v. 15). Ora, de todos os leprosos, era esse o mais estigmatizado, pois era portador de uma dupla maldição: além de leproso, era samaritano. De fato, ser samaritano já era ser impuro por natureza, herege e pecador. Indo diretamente ao sacerdote, ele receberia o atestado de pureza apenas pela metade: estava curado da lepra, mas não tinha como deixar de ser samaritano e ser samaritano na já era prova de impureza para os judeus; por isso, voltou, glorificando a Deus e agradecendo porque em Jesus ele encontraria, realmente, espaço e liberdade para viver plenamente com sua dignidade reconhecida.
O questionamento de Jesus a respeito do comportamento dos outros nove é apenas uma forma tipicamente lucana de ressaltar os comportamentos opostos: “Então Jesus lhe perguntou: “Não foram dez os curados? E os outros nove, onde estão? Não houve quem voltasse para dar glória a Deus, a não ser este estrangeiro?” (vv. 17-18). De fato, do começo ao fim do seu evangelho, Lucas gosta de apresentar seus personagens a partir das diferenças comportamentais extremas: o sim de Maria e a incredulidade de Zacarias, o samaritano e o sacerdote da parábola, Marta e Maria, o fariseu e o publicano. Faz parte da didática do evangelista. Se no texto anterior (Lc 17,1-11), refletido no domingo passado, Jesus tinha alertado seus discípulos a não esperar por reconhecimento quando cumprissem com seus deveres, logo, não condenaria os outros nove que não vieram agradecê-lo e reverenciá-lo. Na verdade, a pergunta de Jesus significa um lamento porque os outros nove não tinham ainda sentido o dom completo da libertação: saíram do povoado, mas o povoado não saiu deles, ou seja, continuavam com a mentalidade tradicional de apego à Lei com seus preceitos, em outras palavras, não aceitaram a emancipação proporcionada por Jesus. Portanto, Jesus não se lamenta por não ter sido agradecido e nem considera os nove ex-leprosos ingratos. Lamenta apenas a permanência deles na mentalidade mesquinha de conformidade à Lei.
O fato de perceber que aquele que voltou para agradecer e dar glória a Deus era um estrangeiro (v. 18), é um sinal claro de outra dimensão importante da teologia proposta por Lucas: o universalismo da salvação. Embora a Samaria fizesse parte do território de Israel, a sua população era considerada estrangeira e, consequentemente, impura; inclusive, só podiam entrar até o pátio dos gentios no templo de Jerusalém. Ainda no evangelho, mas principalmente nos Atos dos Apóstolos, Lucas procura enfatizar que, à medida em que os judeus se fecharam à Boa Nova trazida por Jesus, os pagãos foram aderindo e aceitando a salvação. Por isso, no final, Jesus diz que o samaritano não apenas ficou curado, mas ganhou a salvação: “E disse-lhe: “Levanta-te e vai! Tua fé te salvou” (v. 19), ou seja, ganhou a vida em plenitude; saiu completamente do povoado e o povoado saiu dele.
Concluindo, podemos afirmar que, muito mais que desenvolver uma teologia da ‘gratidão’ e do ‘louvor’, o Evangelho de hoje nos ensina e nos estimula a clamar, confiar e sair, sem medo de romper com costumes e tradições. É necessário perceber onde estão as lepras de nossos tempos. No tempo de Jesus estava na tradição, nos costumes impostos pela religião, nos povoados que impediam as pessoas de pensar e viver a vida em plenitude. Nos dias atuais, pode estar em quem repete tais posições, resistindo aos impulsos do Espírito Santo, sem aceitar seus sopros de renovação.
Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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