Todos os anos, na solenidade da assunção de Maria, a liturgia
propõe para o evangelho o texto de Lucas 1,39-56, trecho que compreende o
episódio da visitação de Maria à sua parenta Isabel, e o cântico do Magnificat.
Nesse cântico, que Lucas põe nos lábios de Maria, está a síntese da história da
salvação, cujo ápice acontece exatamente na pessoa de Maria. Por isso, ela
mesma proclama, em louvação, as maravilhas realizadas por Deus ao longo da
história, desde as promessas a Abraão até a realização em seu ventre. É uma
história longa, cujo fio condutor é a fidelidade de Deus às suas promessas e
sua clara opção pelos pobres, pequenos e desvalidos. Concentraremos a nossa
reflexão somente no texto evangélico proposto, sem colocar em discussão as
outras leituras propostas pela liturgia, nem as afirmações do dogma da
Assunção, proclamado em 1950 pelo papa Pio XII.
Este é um dos trechos mais apreciados do Evangelho segundo Lucas,
sobretudo, nas tradições católicas, devido a relevância dada à figura de Maria.
É uma das raras cenas do Novo Testamento que tem somente mulheres como
protagonistas, o que indica sua importância e peculiaridade. Com isso, o evangelista
preconiza o início de uma nova história para a humanidade, com novas
perspectivas e esperanças; trata-se de uma história construída e escrita a
partir dos pobres, desprezados e marginalizados da sociedade, como eram as
mulheres na época em que Evangelho foi escrito. O que Deus sempre propôs à
humanidade, começa a cumprir-se e realizar-se definitivamente a partir do sim
de Maria. Como pessoas simples e humildes, Maria e Isabel, protagonistas do
episódio, são uma prova de que o Deus de Israel tem um lado na história: o lado
dos pobres, humildes e marginalizados, a quem ele dirige o seu olhar
misericordioso (v. 48).
Localizado no chamado “Evangelho da Infância” de Lucas (Lc 1–2), o
próprio texto de hoje, no primeiro versículo, fornece o seu contexto, através
da expressão temporal “naqueles dias”. Essa expressão faz referência aos
eventos anteriormente narrados: a dupla anunciação: do nascimento de João a
Zacarias, esposo de Isabel (Lc 1,5-25), e do nascimento de Jesus a Maria (Lc
1,26-38), ambos feitos pelo mesmo anjo do Senhor, Gabriel. Ambos os anúncios mexeram
com seus destinatários, deixando-os perplexos, incialmente. Maria, ao contrário
de Zacarias, mesmo tendo questionado o anjo, respondeu convictamente com um sim
(Lc 1,38), o que não significa que não lhe tenham ficado dúvidas e até medo.
Certamente admirada com tudo o que estava acontecendo consigo e
com Isabel, pois o anjo lhe informara (Lc 1,36), Maria tomou a firme decisão de
ir visitar sua parenta: “Naqueles dias, Maria partiu
para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judeia” (v. 39). Embora a maioria das interpretações apontem
o desejo de servir a Isabel como o motivo da partida apressada de Maria, o
texto não fornece nenhum indício. Sem dúvidas, o serviço ao próximo sempre fez
parte do estilo de vida de Maria, sobretudo após o seu sim a Deus. Mas aqui
podemos ver algo além disso. Ora, quando Maria questionou o anjo no momento do
anúncio, sobre como poderia engravidar se não tinha relação homem algum (Lc 1,34),
o anjo disse que tudo seria obra do Espírito Santo, e ainda deu um exemplo
concreto e próximo de que nada é impossível para Deus: Isabel, uma anciã
estéril estava grávida (Lc 1,36). A gravidez de uma anciã estéril seria tão
surpreendente quanto a de uma jovem virgem. É normal e compreensível que Maria
tenha procurado Isabel para confirmar se o que anjo lhe dissera era verdade. Também
é normal que tenha procurado sua parenta para partilhar a alegria do que estava
acontecendo com ambas, como sinal da fidelidade de Deus ao seu povo, Israel, de
quem as duas são imagens.
Ao conceder tanto espaço a Maria no início do seu
Evangelho, Lucas está criando o modelo de discípulo/discípula ideal para Jesus.
Por isso, é importante apresentá-la em movimento, disposta a proclamar, até nos
lugares mais distantes, as maravilhas de Deus e a certeza de que ele está
construindo uma nova história. A partida de uma jovem grávida de Nazaré, na
Galileia, para a Judeia antecipa os desafios e a necessidade dos discípulos de
todos os tempos estarem sempre em estado de saída. Mesmo que a distância não
fosse tão grande, as circunstâncias eram muito adversas para uma mulher jovem e
grávida. É típico da obra lucana o movimento, o sair de si. Essa partida
imediata de Maria faz dela um modelo de discípula e, ao mesmo tempo, inaugura o
primeiro movimento de Jesus: ainda no ventre, Ele já estava inquieto e pronto a
romper qualquer situação de estabilidade e tranquilidade, mesmo enfrentando
adversidades e perigos, como Maria enfrentou ao partir sozinha para uma região
montanhosa e de difícil acesso.
Ao chegar ao destino, Maria “Entrou na
casa de Zacarias e cumprimentou Isabel” (v. 40). Muito mais que
cumprimentar, o verbo “saudar” seria mais apropriado na tradução do texto. A
expressão hebraica para a saudação é o desejo de paz (em
hebraico: shalom). Ao enviar os discípulos em missão, Jesus ordenou que
eles desejassem a paz em cada casa que entrassem (Lc 10,5). Aqui, mais uma vez,
Maria antecipa a atitude de cada discípulo e discípula: ser portador(a) da paz!
Como mulher inovadora e corajosa, ela ignora a tradição patriarcal e saúda a
mulher ao invés do homem (v. 40). Assim, ela provoca uma verdadeira revolução e
inversão de valores nas relações sociais, como aprofundará no seu hino, o Magnificat.
Na sociedade do seu tempo, quem deveria ser saudado era o dono da casa;
saudando a mulher, ela afirma que um tempo novo está surgindo, com novas
relações e uma nova ordem.
A saudação de Maria irradia paz no ambiente, a
ponto de fazer até mesmo a criança, ainda no ventre, agitar-se (v. 41a). Isso
porque Isabel fica “cheia do Espírito Santo” (v. 41b). Trata-se do
mesmo Espírito prometido pelo anjo a Maria no momento do anúncio: “O
Espírito Santo descerá sobre ti” (cf. Lc 1,35a). Como força vital, o
Espírito Santo é luz irradiante e interpelante, que pode ser sentido quando
transmitido por pessoas cheias dele, como Maria. Quem recebe o Espírito Santo,
o irradia por onde passa e onde chega. A atitude de Isabel não poderia ser
outra, senão exclamar, gritando: “Bendita és tu entre as mulheres e
bendito é o fruto do teu ventre!” (v. 42). É a palavra profética que
nela se atualiza. Sabendo que Maria carregava dentro de si o Messias, isso
fazia dela a mais “bendita” entre todas as mulheres. Assim, Isabel torna-se a
primeira a proclamar as “bem-aventuranças” no Evangelho segundo Lucas. Ora,
gerar filhos na mentalidade bíblica, era sinal de bem-aventurança e bênção; uma
confirmação de que se tinha Deus a seu favor. Logo, gerar o Messias seria prova
de uma dignidade inigualável.
Tendo composto seu Evangelho com muita atenção
para a Escritura hebraica, o Antigo Testamento, Lucas procura atualizá-lo no “evento
Cristo”. Assim, na continuação da exclamação de Isabel, o evangelista desenha
Maria como a nova “Arca da Aliança”. Como sabemos, na arca da aliança eram
guardadas as tábuas da lei, sinal máximo da presença de Deus no meio do seu
povo. Com a exclamação de Isabel: “Como posso merecer que a mãe do meu
Senhor me venha visitar? ” (v. 43), Lucas relembra e atualiza as
palavras de Davi quando estava para receber a Arca em sua casa: “Como
virá a Arca de Iahweh para minha casa?” (2 Sm 6,9). Portanto, Lucas percebe
em Maria a arca da nova da aliança, não mais portadora da Lei, mas portadora do
amor e da misericórdia de Deus. Davi exclamou com medo (cf. 2 Sm 6,10),
enquanto Isabel exclamou de alegria, o que mostra que a Lei escraviza e o amor
liberta.
E, mais uma vez, Maria é reconhecida como
bem-aventurada: “Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será
cumprido o que o Senhor lhe prometeu” (v. 45). Além de exaltar as
qualidades de Maria, as palavras de Isabel são também uma repreensão ao seu
esposo Zacarias, o qual, ao contrário de Maria, não acreditou no anúncio do
anjo (Lc 1,20), por isso ficou mudo até que o menino nascesse. Isabel combate a
incredulidade do marido e reforça a sua fé renovada pela presença de Maria,
como ela confessou: “Será cumprido o que o Senhor lhe prometeu” (v.
45b). Ao repreender a incredulidade do esposo Zacarias, um sacerdote, Isabel
proclama a decadência da antiga religião oficial do templo, demonstrando que
somente os pobres, simples e humildes são capazes de acolher as intuições do
Espírito Santo, como Maria. Assim, a religião do rigor e da Lei está
completamente falida.
Provavelmente constrangida com tantos elogios da
parte da sua parenta, Maria a interrompe e, exultando de alegria, expressa seu
louvor a Deus com o seu cântico, conhecido como Magnificat (vv.
46-54). Isso reflete também a preocupação do evangelista com a construção
futura da imagem de Maria na Igreja; o centro do culto e da vida cristã é
sempre Deus, pois é ele o autor das maravilhas operadas e, portanto, é a ele
que o reconhecimento e o louvor devem ser dirigidos. O Magnificat é
o primeiro dos cânticos que Lucas apresenta em seu Evangelho. Trata-se de uma
composição que sintetiza todo o Antigo Testamento. Lucas faz uma construção
nova com pedras antigas, pois o texto é um verdadeiro mosaico de citações do
Antigo Testamento. A estrutura geral é tomada do cântico de Ana (1Sm 2,1-10), o
que se explica pela semelhança das duas situações, uma vez que, assim como
Isabel, também Ana era considerada estéril e concebeu um profeta, Samuel, como
Isabel concebeu João Batista. Se Isabel estava maravilhada por contemplar
grandes coisas (vv. 42-45), Maria lhe ajuda a compreender melhor tal situação,
convidando-a a olhar para a história e perceber que, na verdade, esse Deus de
Israel nunca esqueceu o seu povo, sempre fez grandes coisas em seu favor e,
portanto, é a Ele que o louvor deve ser dirigido. Tudo o que estava acontecendo
era dom de Deus.
Maria personifica todo o Israel e resume os
grandes feitos de Deus na história, destacando, sobretudo, a sua predileção
pelos pobres, humildes e humilhados. Quando reconhece que “o Todo-Poderoso
fez e faz grandes coisas” (v. 49), ao mesmo tempo se afirma que não há
outros poderosos, exatamente porque devem ser derrubados de seus falsos tronos
(v. 52). É o início do cumprimento das antigas promessas, agora sob a
responsabilidade de Jesus e a comunidade dos discípulos, da qual Maria é
modelo. A versão lucana das bem-aventuranças e maldições é também aqui
antecipada: a expressão “Encheu de bens os famintos” (v.
53a) antecipa as bem-aventuranças dirigidas aos pobres (Lc 6,20-21); já a
expressão “Despediu os ricos de mãos vazias” (v. 53b) antecipa
as repreensões – ai de vós – dirigidas
aos ricos (Lc 6,24-25). É, sem dúvidas, a síntese da oração de Israel que
deverá ser continuada pela comunidade dos discípulos, a Igreja cristã.
A conclusão do texto reafirma a imagem de Maria
como nova arca da nova aliança: “Maria ficou três meses com Isabel;
depois voltou para casa” (v. 56). Uma expressão muito parecida aparece
em 2Sm 6,11: “A Arca de Iahweh ficou três meses na casa de
Obed-Edom de Gat, e Iahweh abençoou a Obed-Edom e a toda a sua família”. A presença
de Maria na casa de Isabel foi, com certeza, a confirmação da bênção de Deus
sobre ela, seu esposo Zacarias e o filho esperado, João Batista. Na arca da
nova aliança não há tábuas da Lei, não há norma nem preceito, há apenas Jesus,
expressão máxima do amor e da misericórdia de Deus para com toda a humanidade. O
tempo de permanência de quem irradia o Espírito Santo e a alegria do Evangelho,
como fez Maria e assim devem fazer os discípulos de todas as épocas, é o
suficiente para ressignificar a vida e ler os acontecimentos do presente à luz
de tudo o que Deus tem realizado ao longo da história.
Pe. Francisco Cornelio
Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN